ACTAS  
 
9/2/2014
Clivagem Esquerda/Direita: ainda é importante?
 
Dep.Carlos Coelho

Muito boa tarde a todos. Vamos dar início ao nosso debate. Em cada Universidade de Verão há sempre um debate oponente. Tal como vos disse ontem, foi uma sugestão dada pelos vossos colegas em avaliações de edições anteriores. A lógica é a de colocar temas relevantes da atualidade em cima da mesa e relativamente a esse tema termos duas opiniões diferentes e conflituantes.

 

As pessoas que temos connosco, Miguel Poiares Maduro e Rui Tavares, não estão cá pelos lugares públicos que desempenham, ou desempenharam. Miguel Poiares Maduro, que aliás já esteve em várias edições da Universidade de Verão, é atualmente Ministro, mas não está aqui nessa qualidade. Já Rui Tavares foi um brilhante deputado no Parlamento Europeu e eu sou testemunha disso; é dos homens que em Bruxelas e em Estrasburgo honraram o nome de Portugal e comdossiersparticularmente complicados, quer no domínio da imigração, da reinstalação de refugiados, quer do respeito de valores democráticos em países como a Hungria.

 

São nossos convidados porque são pessoas que têm opiniões fundamentadas, independentemente do seu protagonismo político, estudaram Ciência Política, têm opiniões interessantes e nos deram o prazer de aceitar o nosso convite.

 

Agradeço aos dois, mas o Doutor Poiares Maduro não levará a mal que agradeça especialmente ao Doutor Rui Tavares pela circunstância de não sendo da nossa família política ter aceitado o convite para discutir o tema que temos em cima da mesa.

 

Fazendo a apresentação clássica: nohobby, à minha esquerda, tem "o hedonismo em geral mas em particular cinema, cozinhar e jogar futebol”. Ohobbydo Rui Tavares é a "leitura e de vez em quando tocar muito mal trombone”. Ficamos a saber o que é que ele não faz bem.

 

[RISOS]

 

A comida preferida de Poiares Maduro está constantemente a ser reinventada, portanto temos um criativo gastronómico. Rui Tavares, "nêsperas”, portanto é um homem mais frugal. O animal preferido de Poiares Maduro é o cavalo e do Rui Tavares um gato zarolho chamado, é claro, Camões. O livro que Poiares Maduro nos sugere é "Imperfect Alternative: Choosing Institutions in Law, Economics and Politics”. O livro que Rui Tavares nos sugere: "O Barão Trepador” de Ítalo Calvino.Filmes sugeridos: "Mr. Smith goes to Washington” e "Unforgiven”; "Fahrenheit 451”.A qualidade que Poiares Maduro mais aprecia é a honestidade e a que Rui Tavares mais aprecia é a integridade. Estão ambos apresentados.

De acordo com as regras que estabelecemos entre todos, a primeira pessoa a falar é Rui Tavares. Ambos os oradores vão fazer a primeira intervenção na duração de 20 minutos e vão responder à pergunta se a clivagem entre Esquerda e Direita ainda é uma clivagem fundamental, ou se na sociedade moderna em que vivemos há outras distinções que são mais relevantes que esta fratura ideológica.

 
Rui Tavares

Muito obrigado. Queria agradecer ao Carlos Coelho este convite e as palavras simpáticas dele no início, mas que terei de devolver porque o Carlos Coelho não é só um excelente deputado europeu com quem se pode trabalhar sempre bem, quer quando se concorda, quer quando se discorda. Como, além disso, já estando no Parlamento Europeu há muitos anos é um deputado europeu que frequentemente ajuda nas questões práticas e na pedagogia em relação àquela casa complexa os novos deputados portugueses e eu fui beneficiário dessa generosidade e da amizade do Carlos Coelho no Parlamento Europeu.

 

Vamos começar, porque temos um tema muito interessante hoje, nestes dias que estão a decorrer, e sei que querem ouvir debate político. Vou começar por um exemplo: imaginem que vos dizem que os pontos cardeais já não fazem sentido. Na verdade, passam dias inteiros das vossas vidas sem terem de saber onde é que é o Norte e o Sul, o Este e o Oeste. Para irem da sala para a cozinha, ou para combinarem um encontro, não precisam de saber onde estão os pontos cardeais. No entanto, os pontos cardeais são essenciais se quiserem comparar um mapa com a realidade, se se quiserem orientar, se quiserem traçar uma rota conjunta com outras pessoas, ou se quiserem saber onde é que se situam, onde é que se situa o vosso país, por exemplo, de acordo com outras direções.

 

Neste exemplo, veem facilmente qual é que é o argumento e a metáfora: a Esquerda e a Direita são como pontos cardeais na política. Pode ser que na maior parte dos dias as pessoas não tenham como base nisso todas as escolhas das suas vidas, como quem são os seus amigos e com quem falam. No entanto, no momento em que precisamos de escrever a nossa posição política, um entendimento mais sofisticado da política, traçar a nossa rota conjunta com os nossos companheiros e saber onde estão os nossos adversários, precisamos da Esquerda e da Direita como precisaríamos na Geografia do Norte, Sul, Este e Oeste.

Não é possível ter entendimento sofisticado do que é a política sem ter em conta estas categorias.

 

Daqui a pouco o Miguel Poiares Maduro vai ter a tarefa difícil de dizer que esta distinção já não é tão fundamental, mas mesmo as pessoas que dizem que não acreditam nesta distinção de Esquerda/Direita, ou que dizem que não se pautam por ela, depois - reparem - que elas acabam por se referir a ela quando se posicionam perante outras pessoas. "Eu não acredito em Esquerda e Direita mas aquela pessoa está à minha Esquerda, ou aquele ainda está mais à Direita do que eu

Portanto, esta convenção, estes pontos cardeais da política, que não são os únicos, pois poderíamos acrescentar outros dois: libertário e autoritário. Com estes já ficamos com uma noção bastante clara de onde as pessoas se podem posicionar: se são da Esquerda libertária, da Direita autoritária, da Esquerda autoritária, ou da Direita libertária. Com estes quadrantes conseguimos começar a posicionar as ideologias, os partidos e as correntes de pensamento.

 

Agora, queria chamar-vos a atenção para um aspecto nesta expressão "pontos cardeais”. Temos ideia de que os pontos cardeais são fixos, mas gostaria de esmiuçar esta palavra porque cardeais tem uma origem bastante interessante. Vem de uma palavra latina que designa as dobradiças das portas ou das janelas:cardoé a dobradiça de uma porta ou janela.

 

É importante entendermos os pontos cardeais como pontos de viragem, onde as coisas dobram, onde as diferenças estão vincadas, onde há uma razão para dinamismo e mudança, mais do que entender Esquerda/Direita só como a Ciência Política normalmente o faz, como uma espécie de espectro fixo em que a Esquerda e a Direita estão sempre no mesmo lugar. Elas não estão sempre no mesmo lugar. Há movimentos de encontro e desencontro, há avanços e recuos, há momentos de ataque e contra-ataque e nesse sentido ir buscar esta origem da palavra cardeal.

 

Lembrar que é como as dobradiças de uma porta ou de uma janela, quer significar para nós que em muitos pontos de viragem (que uma sociedade tem) a Esquerda e a Direita opõem-se. Se deve haver redistribuição ou não, se devemos ter impostos mais altos para podermos redistribuir, ou se devemos tê-los mais baixos para haver mais competição para empresas; se deve haver, ou não, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou fronteiras mais abertas ou mais fechadas - todos estes são pontos de viragem.

Pode ser que estes pontos de viragem nem sempre correspondam à Esquerda e à Direita e ao Centro políticos. Muitas vezes eles mudam precisamente por causa desta dinâmica. Se há por exemplos movimentos de expansão, em determinadas causas que são de Esquerda ou de Direita, causas sociais, ou económicas, acontece que o ponto onde está a dobradiça se desloca. Às vezes desloca-se para o Centro, outras para a Esquerda, outras para a Direita. Curiosamente esta ideia docardo, da dobradiça, era uma ideia que os próprios romanos aplicavam nas suas cidades. Todas as cidades romanas tinham uma rua que chamavam ocardo, que ia de Norte para Sul e dividia a cidade ao meio. Toda a gente morava à esquerda ou à direita do cardo e na cidade onde nasceu a política -polisquer dizer cidade, onde os humanos viviam em conjunto e portanto têm de definir as suas posições recíprocas. É natural que elas se orientem em relação a um eixo; se aproximem ou se distanciem dele.

 

Agora, uma pergunta: o que havia antes de Esquerda e de Direita? Já havia divisões políticas certamente, mas eram muito diferentes das nossas divisões de hoje. As divisões políticas antes de Esquerda e de Direita faziam-se muitas vezes por razões feudais: quem era pelo Duque, quem era pelo Conde; por razões de casta: quem era dos Brâmanes, quem era dos Chatrias, na Índia por exemplo; por razões de religião. Esta muito bonita vila em que estamos, Castelo de Vide, era um dos lugares em Portugal onde havia mais judeus portugueses e judeus espanhóis que tinham fugido de Espanha. A partir de certa altura o Rei determinou que os judeus deixavam de ser judeus, passavam a ser cristãos-novos. Por aí, por esta divisão, estava demarcada toda a sua vida, os empregos que podiam ter e os que não podiam ter.

 

As divisões eram entre nobres e plebeus, entre clérigos e não-religiosos, e eram divisões que podiam ser entre Norte e Sul, entre regiões, entre senhores da guerra, redes clientelares, entre outros. Em algumas partes do mundo ainda é assim, não há Esquerda e Direita, há divisões feudais, há senhores da guerra, divisões étnico-religiosas como estamos a ver por exemplo na Síria e no Iraque.

A segunda tese que eu vou defender aqui é que esta forma de divisão é obviamente muito inferior à de Esquerda e de Direita, porque toma cada pessoa por aquilo que ela nasce e determina que ela há-de ser assim igual até que morra. Ao passo que Esquerda e Direita são divisões por grandes áreas de ideias, de valores e de princípios, que são mais ou menos comuns e conjuntos e que evoluem de forma paralela, embora mudem. Como eu disse antes, esta divisão não é estática, é dinâmica.

 

Quando acabou essa divisão feudal e começou a divisão de Esquerda e Direita? Isso é muito curioso e por isso eu dizia que é interessante termos este debate nos dias em que estamos porque na verdade faz anos agora: faz 225 anos que nasceram a Esquerda e a Direita. Em 1789 em França, o Rei convocou uns estados-gerais porque estava tão endividado na altura e nessas ocasiões costumava-se convocar os estados-gerais. Só que os estados-gerais eram assembleias em que, tal como expliquei antes, as pessoas não só não eram iguais como eram por lei desiguais. A desigualdade estava firmada por lei e acompanhava as pessoas do nascimento até à morte. Os nobres reuniam numa sala, os religiosos noutra sala, os plebeus, ou seja, o povo, os burgueses, reuniam noutra sala.

 

Só que desta vez em 1789 muitas pessoas não queriam reunir em salas diferentes e consideravam que todos os representantes dos franceses deveriam reunir na mesma sala e ter um voto cada um. É, digamos, o início do nosso parlamentarismo. Oterceiro estado, que era o que os plebeus chamavam aos burgueses, revoltou-se e disse que só reuniria se reunisse com as outras ordens do Estado.

Passados alguns dias alguns clérigos vieram ter a essa mesma assembleia e depois os nobres vieram também e finalmente em finais de Junho de 1789 fizeram um juramento. O Rei fechou as salas e disse que eles não reuniam mais. Eles foram para umas salas chamadas de Jogo da Pela, que era uma espécie de antigo ténis, um desporto que se jogava numa sala fechada, e nessa sala juraram que só se reuniriam quando naquela assembleia todos valessem o mesmo, não houvesse diferenças de Ordens e se considerassem a si mesmos uma assembleia constituinte da França, ou seja representantes da Nação, em vez de serem aqueles que o Rei se tinha dignado a convocar segundo os seus estratos diferentes.

 

O Rei cedeu em Julho. Isto era em Versalhes. Entretanto o povo tomou a Bastilha e isto pôs muita pressão sobre aqueles representantes, que passaram a ser não representantes dos nobres, do clero e do povo, mas de todos os franceses. Nos finais de Julho e inícios de Agosto começaram a discutir basicamente para onde é que a sociedade se ia dirigir agora que ela já não era dirigida pelo Rei mas por todos os representantes da nação, por uma assembleia constituinte nacional.

A primeira coisa que fizeram foi acabar com os direitos feudais. Ou seja, a sociedade de que vos falei antes deixava de existir. Uma pessoa lá porque nascia judia ou cristã-nova, ou protestante, ou católica, não tinha a sua vida completamente determinada até ao fim. Essa é a primeira decisão.

 

A partir de que acabaram os direitos feudais - e a palavra direito na altura pertencia apenas a algumas categorias de pessoas, nem todas tinham direitos, mas as que estavam num determinado estrato da sociedade tinham -, começaram a discutir um documento essencial para nós: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Ou seja, não há direitos adstritos a castas, há direitos para todos da mesma maneira.

Houve uma senhora chamada Olympe de Gouge que levantou o dedo e disse: "Atenção, deviam ser os direitos do homem, da mulher, do cidadão, da cidadã” e escreveu um livro sobre isso. Essa evolução demorou mais tempo mas também teve vencimento.

 

Em 26 de Agosto de 1789, a partir do momento em que votam a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, faz agora praticamente 225 anos na semana passada, pôs-se a seguinte questão: será que o Rei tinha direito de veto ou não? Algumas pessoas diziam que sim, porque ele era um representante da Nação de uma forma mais prolongada do que aqueles que estavam sentados ali e portanto teria o direito de vetar inclusive os direitos do Homem que tinham sido votados dois dias antes. Outra parte da assembleia dizia que não, pois se todos eram iguais, se tinham acabado de escrever na declaração que todos eram livres e iguais em direitos perante a lei, o Rei não deveria ter um direito de veto que mais ninguém tinha. No dia 28 de Agosto de 1789 as pessoas entraram na sala onde finalmente tinham podido reunir e alguém reparou e disse ao presidente da assembleia: "Repare que já há diferenças entre nós: uns estão à sua direita e são a favor do direito do veto do Rei, ou seja acham que devemos ir mais devagar, ser mais conservadores nas nossas mudanças, já os outros que estão à nossa esquerda acham que se todos são livres e iguais em direitos não há direito de veto para o Rei”.

 

Bem, isto saldou-se por um compromisso em que o Rei tinha direito de veto por dois mandatos da assembleia legislativa, mas entretanto o Rei revoltou-se contra a revolução, fugiu de França, foi decapitado e a história continuou de outra forma bastante diferente. Mas ainda antes disso, no dia 11 de Setembro, os deputados dessa assembleia constituinte voltaram ao trabalho e repararam que continuavam sentados à esquerda e à direita do presidente. O que quer dizer que nesta sala era trocado, pois na verdade os de Esquerda tinham entrado para a direita da sala e os outros para a esquerda da sala. Assim, nasceu esta convenção que passado algum tempo começou a ter uma série de atributos e é aí que podemos começar a preencher os atributos que têm a Esquerda e a Direita.

 

Digo no plural porque muita gente tem tentado definir uma só razão para distinguir a Esquerda da Direita; que a Direita seria pela liberdade e a Esquerda pela igualdade; que a Direita seria contra o Estado e a Esquerda a favor do Estado; mas do meu ponto de vista isto não serve.

 

Não serve porquê? Porque nesse caso não precisaríamos de distinção de Esquerda e Direita, teríamos só estatistas e anti-estatistas, libertários e igualitários, quando na verdade precisamos da Esquerda e da Direita não só para uma ou duas diferenças entre nós - lembrem-se da tal expressão do cardeal, ou seja, ali onde a sociedade se divide e oscila. Mas precisamos de Esquerda e Direita para uma série de coisas que estão um bocadinho associadas por uma espécie de uma mesma visão do mundo, de uma espécie de ar de família, que inclui ideias acerca da igualdade e da liberdade dos dois lados.

Tanto a Direita como a Esquerda não se dividem com a igualdade para um lado e liberdade para o outro, mas por visões diferentes do que devem ser a igualdade e a liberdade, como vimos no exemplo de há 225 anos.

 

Ideias diferentes acerca do Estado, da crise ecológica, dos direitos cívicos, etc., que estão em constante evolução e que são plurais mesmo dentro da Esquerda e da Direita, pois há a Esquerda libertária e a autoritária, e a Direita libertária e autoritária. Podíamos acrescentar que há uma Direita mais progressista, outra mais conservadora, ou uma francamente reacionária, etc. Mas ainda assim, no nosso dia-a-dia político, usamos e precisamos de usar essa diferença entre Esquerda e Direita, ela é-nos prática por uma razão muito simples que tem a ver com tudo o que vos disse até agora: porque ela é a grande divisão política da modernidade.

A modernidade é aquele período da História - vamos dizê-lo de forma simplista e também para nos ajudar a avançar pois faltam apenas cinco minutos - de que nós falámos há bocadinho, é aquele período em que em vez de estarmos determinados por castas do princípio até ao fim da vida, somos representantes das nossas próprias ideias e cada um pode mandatar temporariamente alguém para o representar numa assembleia nacional.

Ou seja, deslocou-se de ser o Rei, ou o Papa, ou o Duque, ou o Conde, a decidir por nós, para sermos nós a decidirmos por nós. Portanto, é natural que, como qualquer pessoa que tem finalmente o poder de decidir o seu caminho, a primeira pergunta seja: eu vou para a direita ou vou para a esquerda? Se os meus pais me disserem que eu agora posso andar sozinho na cidade, vou por aquela rua ou por outra?

 

A Humanidade passou para este ponto de emancipação, de maioridade, no momento em que deixou de ser necessário que o livro sagrado, ou o Rei, ou o Papa, dissessem "vocês vão por aqui”. E a partir desse momento a que chamamos de "modernidade” para simplificar, a Humanidade teve de se perguntar a si mesma: vamos pela esquerda ou pela direita? Portanto, teve de discutir em conjunto, dialogar entre si e aí se encontraram estas inúmeras - são muitas e são plurais - diferenças. São tão plurais como são na Geografia do planeta Terra as montanhas no Norte e as planícies no Sul, mas também há montanhas no Sul e planícies no Norte e no entanto continuamos a precisar de pontos cardeais para nos orientarmos.

 

Faltam três minutos e meio e eu aqui quero dobrar a aposta. Na verdade, não queria só defender aquilo a que o Carlos me desafiou aqui, a ideia de que ainda faz sentido falar de Esquerda e de Direita. Mas como já podem ter adivinhado, os que seguiram o meu discurso dizendo que esta distinção surge com a modernidade e se desenvolve à medida que a própria modernidade se vai desenvolvendo, o que eu queria defender e que decorre logicamente do que disse até agora é que faz ainda mais sentido falar sobre Esquerda e Direita hoje do que fazia no passado.

Faz mais sentido porque em cada vez mais partes do mundo e esperemos que em cada vez mais partes do mundo, a Humanidade se pode colocar a questão de que a assembleia constituinte francesa ou americana se pôs a si mesma: para onde é que vamos é só a nós que cabe decidir.

 

Faz sentido e eu dividiria isto em três planos: em Portugal, na Europa e faz mesmo sentido à escala global. Em Portugal: aqui admito uma declaração de interesses que é muito diversa, naturalmente, da que vos junta aqui. É, portanto, com vivacidade democrática que vamos discutir isto. Portugal tem um caso que os cientistas políticos chamam de sinistrismo, todos os partidos têm nomes mais à esquerda do que aquilo que na verdade representam. O vosso partido tem um nome que no resto da Europa seria de Esquerda, mas no Parlamento Europeu o vosso partido senta-se num grupo da Direita, o PPE. Mas embora em Portugal os nomes dos partidos estejam desviados à Esquerda, a prática política está desviada à Direita. Isso acontece porque - poderemos discutir melhor mais à frente - em 75/76 nas nossas eleições, quando fomos às urnas pela primeira vez depois do 25 de Abril, a Esquerda teve 60% dos votos mas no entanto a grande divisão na altura não passava entre a Esquerda e a Direita, mas no meio da Esquerda.

 

Hoje em dia, o mundo mudou, o Muro de Berlim caiu, já não há Bloco de Leste e Bloco Ocidental, embora alguns os queiram recriar, mas a Esquerda portuguesa não mudou e continua tão dividida como em 75 ou 76. Isto é negativo para todo o país, inclusive para quem não é de Esquerda. Porque significa que a política portuguesa é como um carro em que as rodas de um lado estão a travar e portanto só anda aos círculos. Aquilo que defendo e que cada vez mais pessoas à Esquerda defendem é que é preciso ter como objetivo que a Esquerda portuguesa também ela própria chegue à modernidade política, consiga governar, deixe de ter esta ideia de que o Governo é para os outros e governe junta.

Claro que é por isso que eu dizia que há aqui uma declaração de interesses a fazer, porque no fundo aquilo que eu estou aqui a dizer é que o meu objetivo político é que o vosso partido vá para a oposição e de preferência que fique lá durante bastante tempo, do meu ponto de vista. Espero que não me levem a mal por dizer isto. Mas isso fará de Portugal um país mais funcional politicamente e mais dinâmico.

 

Na Europa: a Europa está ela própria a aproximar-se de ser uma democracia. É um caminho muito longo. De certa forma estamos numa fase pré-moderna porque as nossas diferenças entre alemães e portugueses estão a ser dadas como sendo maiores do que as nossas diferenças entre alemães e portugueses progressistas e alemães e portugueses conservadores, alemães e portugueses de Esquerda e alemães e portugueses de Direita.

Considero essencial que a Europa se torne numa democracia e portanto haja um movimento progressista à escala europeia, como eventualmente conservadores, que se distingam por ideias e não por nacionalidade.

 

Para terminar, porque chegámos ao fim, a escala global: grande parte dos nossos problemas hoje em dia foram deslocados para a escala global mas à escala estatal e regional, apesar de tudo, conseguimos resolver alguns na redistribuição, nos impostos, na regulação. E os poderes fáticos do mundo escaparam para onde podiam, para onde ainda não é regulado, para os paraísos fiscais com as multinacionais, com os fluxos de dinheiro à escala global, etc. Mas não é só isto, é um problema global. As alterações climáticas são um problema global, tal como a proliferação nuclear e a segurança no mundo.

Infelizmente, à escala global nós estamos ainda numa fase pré-moderna de certa forma, porque mandam grandes coletivos: ou os Estados, ou multinacionais, ou outros do género. Mas os cidadãos do mundo - em Portugal já votam enquanto cidadãos portugueses e na Europa enquanto cidadão europeus - não têm uma palavra a dizer para onde é que vai o mundo.

 

Defendo que o mundo, também ele próprio, se dote de mecanismos através de tratados, convenções, uma Declaração Universal dos Direitos do Homem que deixe de ser só uma declaração e passe a ter força de lei, um tribunal internacional de direitos humanos, um dia um tribunal internacional contra os crimes ambientais e um dia por exemplo uma assembleia parlamentar das Nações Unidas. Reparem que nas Nações Unidas somos representados por diplomatas, à maneira antiga, e não por representantes dos países; podiam alguns dos nossos deputados ir lá. A partir daí poderá acontecer nessa assembleia parlamentar das Nações Unidas o mesmo que aconteceu no Parlamento Europeu, onde nos sentámos não por países mas por conjuntos de ideias e isso é mais respeitador das nossas diferenças e também daquilo em que somos fundamentalmente iguais.

 

Portanto, hoje, 225 anos depois do nascimento da Esquerda e da Direita, desta espécie de dobradiça dinâmica, deste ponto cardeal, da política. Como as dobradiças normalmente não servem só para abrir e fechar portas, uma dobradiça é aquilo que sustenta a própria porta, ou seja a própria democracia, o próprio Estado de Direito, a Esquerda e a Direita é também aquilo que nos permite abrir portas, se as soubermos usar bem. Ou às vezes se não soubermos participar na política de uma forma informada, cívica e democrática, fechar portas e fechá-las definitivamente.

Era isto que gostaria aqui de vos dizer. Muito obrigado.

 

[APLAUSOS]

 
Miguel Poiares Maduro

Muito obrigado pelo convite e em particular por esta oportunidade também de discutir com o Rui. Nós já discordámos e concordámos mesmo antes de ambos entrarmos na política, já nos conhecíamos antes disso e portanto é um prazer especial estar aqui. Ambos temos alguma inexperiência de termos entrado recentemente na política, em parte vindo do mundo académico, se calhar temos uma outra experiência da política particularmente importante.

A esse respeito não resisto a contar uma piada verdadeira do Woodrow Wilson que antes de ser Presidente dos EUA foi Governador de Nova Jersey e quando se candidatou a Governador deixou a Universidade de Princeton onde era reitor. Perguntaram-lhe porque é que ele deixava a Universidade de Princeton e a resposta dele foi: estou farto de política. Portanto, quem como nós conhece o meio académico universitário se calhar acha que ainda há locais onde a política é mais dura do que no espaço tradicional da política que é a democracia representativa.

 

Mas, enfim, deixando de lado esta piada e esta parte em que estive a ser simpático com o Rui não devia contar para os meus minutos. Quero começar por dizer que há um ponto em que estou totalmente acordo que é o pressuposto no fundo que é a questão dos pontos cardeais. É fundamental ter pontos cardeais na política, ter referências políticas para a organização de alternativas políticas, mas a questão fundamental é esta: para que é que servem os pontos cardeais? Servem para nos orientar, para chegarmos a algum lado. É útil para mim saber onde é que é o Sul e o Norte. Se eu quiser ir para o Porto dizem-me "vá naquela direção que é o Norte” e vai dar ao Porto.

 

Agora imaginem que vocês perguntavam onde é que era o Norte porque queriam ir para o Porto e diziam-vos "vá ali na direção do Algarve”, é porque de repente aquele ponto cardeal deixava de ter utilidade. Já não era o Norte e o Sul como conhecíamos, mas era outra forma de Norte e Sul. Nesse contexto, a manutenção desses pontos cardeais não nos orientava, desorientava-nos, levava-nos um bocadinho àquela situação bíblica em que Deus perdoa os habitantes de Nínive dizendo que eles estão tão desorientados que já não sabem onde é a esquerda e a direita. Eu acho que essa é hoje a realidade política.

 

Ou seja, as formas tradicionais que serviam de orientação política em termos de Direita e Esquerda já não são úteis enquanto pontos de referência e enquanto forma de organização de alternativas políticas. No fundo é isso que vou procurar demonstrar, mas tendo esse ponto importante: é fundamental termos essas alternativas políticas e há um risco se não substituirmos esses pontos cardeais tradicionais por outros que sejam mais realistas e mais correspondentes às verdadeiras opções políticas que temos. Isso é fundamental. Acho que a nossa discordância não será sobre a necessidade da existência dessas diferentes alternativas políticas e elas têm realmente de ser simplificadas porque senão não conseguem canalizar o pluralismo político num sentido produtivo que é aquele que a democracia deliberativa exige.

Para a democracia poder ser um processo amplamente participado tem sempre de se simplificar e essa é a grande vantagem de ter Esquerda e de Direita. É por isso que, apesar de (do meu ponto de vista) ela já não ser útil, ela continua a ser utilizada, uma das grandes razões é essa, por necessitarmos de algum ponto de orientação.

A verdade é que do meu ponto de vista estamos a recorrer a um ponto de orientação que já não é correto.

 

Numa revista norte-americana,The Atlantic, também ela moderada e daí difícil de dizer se de Esquerda ou de Direita, havia um autor que tinha um artigo recentemente precisamente sobre isto. Pequeno, mas tinha. Era o Crispin Sartwell e dizia: "A divisão entre Esquerda e Direita pode até ser uma divisão entre diferentes identidades sociais, mas não é certamente uma divisão entre diferentes ideias políticas”.

Este é para mim o ponto principal e que no fundo vou aqui tentar defender. É sempre possível atribuirmos uma definição à Esquerda e à Direita. O Rui pode fazer e para mim Esquerda é isto e Direita é aquilo. A partir daí dizer que quem cai no primeiro é Direita, quem cai no segundo é Esquerda. O problema é que isto só é válido se estas divisões tiverem correspondência com as definições com os próprios partidos e com a própria ação política na realidade. Se não tiverem só servem para enganar quem participa no espaço político; desorientam-nos, enganam-nos, não nos conduzem no sentido verdadeiro a alternativas políticas. Este para mim é o ponto, é que a divisão Esquerda/Direita hoje não funciona por duas razões fundamentais.

 

Primeiro porque as instituições que tradicionalmente são usadas para identificar Esquerda e Direita já não têm correspondência com a realidade. Vou tentar demonstrar porque é que é essa a minha opinião. A segunda pela qual eu acho que essa divisão já não é útil é porque as diferenças entre aqueles que se definem normalmente como de Esquerda e aqueles que se definem normalmente como de Direita, as diferenças no interior desses grupos são maiores do que as diferenças entre muitos daqueles que pertencem ao que classicamente se designa de Esquerda e Direita.

Se essas diferenças são maiores, então a diferença entre Esquerda e Direita já não é útil, perde-se esse ponto de referência, porque nós ao associarmos com Esquerda ou com Direita tenderemos a estar colocados dentro de um grupo, e provavelmente temos mais diferenças do que outros que estão dentro de um grupo que se autodefine ou é classificado como de Esquerda e de Direita.

 

Portanto, os dois problemas fundamentais são por um lado já não haver correspondência com a realidade das tradicionais divisões utilizadas entre Esquerda e Direita e por outro a inconsistência dentro dos grupos que em termos de identidade social se definem como de Esquerda e Direita é tão grande que ela já não é útil como ponto de referência e de alternativa para nós pertencermos a um grupo ou a outro.

Nesse sentido, a diferença entre Esquerda e Direita é hoje em boa parte uma que tem a ver muito com a identidade social. Está mais próxima daquelas divisões que o Rui no fundo critica. Tem a ver com a origem social das pessoas, com a história, menos do que com verdadeiras ideias que as pessoas defendem. A razão pela qual se mantém esse uso é desde logo essa mesma: é uma forma de identidade social, mais do que identidade política. Isto é que é importante.

 

Mas há duas outras razões que são mais instrumentais. Uma é porque dependendo do contexto histórico em que é utilizada essa distinção, ser de Esquerda ou de Direita pode dar a determinados grupos políticosa prioriuma certa reivindicação de supremacia moral ou intelectual.

No contexto histórico português há uma tendência para as pessoas terem um receio de dizerem que são de Direita e uma tendência para a Esquerda assumir uma posição de supremacia que tem a ver com a nossa História política recente, porque a nossa ditadura é entendida como uma ditadura de Direita.

 

Portanto, o facto de se ser de Esquerda dá uma certa autoridade no debate público superior. Tende a dar isso. Não estou a dizer aqui que seja esse ou que seja o objetivo que o Rui utiliza, mas essa é uma das circunstâncias pelas quais a divisão é utilizada do ponto de vista instrumental. A segunda, essa sim, parece-me claro naquilo que o Rui estava a fazer, que era criar artificialmente - eu acho, mas ele dirá que não - uma forma de coligação entre grupos muito heterogéneos. Tem uma instrumentalidade política. Permite ainda presumir que há uma identidade - pois no meu ponto de vista ela não existe -, porque politicamente ela é útil para gerar uma coligação.

 

O que é que poderia dividir Esquerda e Direita? Primeiro, há uma divisão clássica entre progressistas e conservadores, que me parece que hoje em dia já ninguém claramente assume. Porque há conservadores de Direita, há conservadores de Esquerda, há progressistas de Direita e de Esquerda. Vinha no carro a falar com o Daniel Innerarity a discutir precisamente que havia quem dizia que tradicionalmente a Direita tenderia a ser mais pessimista, sobretudo de um ponto de vista quanto à natureza humana e a Esquerda mais otimista. Mas o Daniel que se identifica como sendo de Esquerda disse hoje que acha a Direita mais otimista do que a Esquerda e que esta é mais pessimista mesmo em relação à natureza humana.

 

Portanto, essa relação que tem a ver precisamente com o ser mais progressista ou mais reformador, ou mais conservador, é hoje claramente mais difícil de colocar no campo da Direita ou da Esquerda.

Mas há duas ideias que direi que são aquelas que continuam a prevalecer. A primeira e que estava presente no que disse o Rui, é a distinção entre liberdade e igualdade. A ideia seria que a Direita teria uma preocupação especial com a liberdade e a Esquerda uma maior preocupação com a igualdade.

 

A verdade é que hoje em dia - aliás podíamos ter uma discussão filosófica muito mais profunda - a discussão entre liberdade e igualdade, do meu ponto e vista e mesmo do ponto de vista filosófico, é muito mais ténue do que normalmente se entende. Hoje em dia ambos os campos políticos da Esquerda e da Direita - atenção e quando falo destes dois é como eles são tradicionalmente definidos como tal, não é porque eu acho que eles correspondam à Esquerda e à Direita, mas lá está, na ausência de outros pontos cardeais são aqueles que se autodefinem como tal ou que são definidos como tal - reconhecem esses valores.

Podíamos entender que ainda assim a distinção poderia fazer sentido enquanto uma espécie de regra de conflito. Em caso de conflito a Esquerda tenderia a achar que a igualdade deveria prevalecer sobre a liberdade enquanto a Direita entenderia que a liberdade deveria prevalecer sobre a igualdade. Mas a realidade é que hoje a prática política dos atores políticos que são, de novo, da Direita ou da Esquerda como elas são tradicionalmente enquadradas, é uma que procura sempre o equilíbrio entre liberdade e igualdade.

Mesmo na prática muitas políticas de partidos políticos que se autointitulam de Esquerda criaram e promoveram novas desigualdades.


Está ali o Daniel que escreveu um texto interessantíssimo sobre a social-democracia ser uma nova corrente de Esquerda, mas provavelmente em Portugal ser definida como de Direita sendo uma social-democracia liberal. Em que uma das questões que notam é que uma das políticas tradicionais de Esquerda, por exemplo de rigidez da legislação do mercado laboral, tendem é a produzir novas desigualdades entre aqueles que já estão no mercado de trabalho e os que querem aceder a ele.

Há imensas políticas que a Esquerda tem e que os partidos de Esquerda continuam a defender que hoje em dia são é promotoras de desigualdade. Sobretudo da desigualdade dos que estão dentro e dos que estão fora, tendo os que estão dentro muitos direitos e os que estão fora não tendo direitos nenhuns. Ou a geração atual e a geração futura.

 

É por isso que há (até dentro daquilo que tradicionalmente se defende de Esquerda) muitos que hoje em dia dizem que afinal o liberalismo é que é a verdadeira Esquerda. Em Itália, por exemplo, Alberto Alesina defendeu isso e está a ser influente no Partido Democrático Italiano nesta altura. Essas políticas liberais são, aliás, as que são atribuídas a este Governo em Portugal.

 

Já agora outro ponto, discordo do Rui no seguinte aspecto: não acho que em Portugal a prática política tenha sido daquilo que classificamos como Direita. Basta ver a presença do nosso Estado na Economia. Atendendo ao que classicamente se define como Esquerda e Direita, a presença do nosso Estado na nossa Economia é muito superior à de outros Estados e não gerou - outro ponto importante - mais igualdade. Portugal é, há décadas, independentemente dos partidos políticos, um dos países mais desiguais da Europa e com menos mobilidade social. Portanto, não foi por políticas, por uma grande presença do Estado na Economia, que nós conseguimos diminuir a desigualdade social em Portugal, nem aumentar a mobilidade social. Mais, podíamos dizer que a Esquerda tem uma maior preocupação redistributiva, mas por exemplo se olharmos para as políticas que foram adotadas pelos diferentes governos na Europa neste período de ajustamento e contexto de austeridade há estudos, não só do FMI, que dizem que as políticas deste Governo que é classificado em Portugal como de Centro-Direita foram das políticas mais progressistas em termos de atingir os diferentes rendimentos. As mais progressivas e portanto aquelas com maior preocupação em termos de corrigir impactos de desigualdade. Isto é óbvio pelas circunstâncias. Não quero aqui estar a falar das medidas do Governo, mas a partir do momento em que 85% dos reformados não foram atingidos por cortes para se obter as poupanças, isso significou que grande parte dos cortes incidiram sobre os 15% que mais recebiam.

 

Isto é verdade. A partir do momento em que se alarga o subsídio de desemprego para trabalhadores independentes, a partir do momento em que se aplicam sobretaxas no imposto aos rendimentos superiores a 80 mil e uma outra ainda adicional para os 250 mil são tudo medidas que tradicionalmente seriam vistas como medidas com grande preocupação redistributiva. Foram adotadas por um Governo que tradicionalmente é considerado como sendo de Direita.

Mas, atenção, o facto de eu ter criticado a Esquerda por defender políticas que na prática têm consequências de promoção de desigualdade e isso portanto comporta uma inconsistência com aquela identificação tradicional de Esquerda de igualdade, a mesma crítica de inconsistência pode ser para aqueles que normalmente se classificam como de Direita. Desde logo nos temas dos costumes e das questões morais, em que muitos dos que se dizem liberais depois nessas áreas são sobretudo conservadores, dão prioridade a outros temas que não a liberdade.

Neste momento aqui a única coisa de que quero falar é dessa ideia de inconsistência, portanto da circunstância destas divisões já não fazerem sentido dessa forma.

 

A outra grande forma de distinguir Esquerda e Direita tradicionalmente é pela associação entre Esquerda com Estado e Estado por sua vez com interesse coletivo, interesse público, e Direita com o Mercado e este com uma associação a liberdade. Mas a verdade é que esta distinção também já não faz sentido. Por um lado porque hoje é claro e está analisado e estudado que o Estado - e quando refiro Estado aqui não me refiro a comunidade política, a Portugal, mas sim enquanto aparelho burocrático e processo legislativo - nem sempre prossegue o interesse público. Porquê? Por duas razões fundamentais. Primeiro, porque o Estado é um mecanismo de decisão social, como outros mecanismos, como o próprio Mercado é, em que a formulação das decisões que toma depende da participação nesses processos de decisão. Essa participação não é igual para todos.

Não tem a ver com corrupção, necessariamente, mas sim com diferentes formas de acesso ao processo político, com diferentes formas de pressão sobre o processo político, com o poder que diferentes grupos têm no espaço mediático, por exemplo, e com a informação que chega para o processo político de decisão.

 

Uma decisão, qualquer que ela seja, assenta em informação e quem controlar essa informação controla boa parte do resultado final dessa decisão. Isso é normal, não é uma forma de corrupção do processo político, é a forma como qualquer processo de decisão funciona. Naturalmente há certos interesses que serão mais representados que outros, mas isso tem como consequência que muitas vezes o Estado não corresponde ao interesse coletivo. A ideia de relação entre Estado e interesse coletivo como ideia mediática assenta muito numa lógica causal, em que se presume que o Estado por um lado consegue agregar e ponderar de forma completa e centralizar as preferências de todos os indivíduos.

Portanto, a função do Estado é: agrega a função de todos, sabe exatamente o que é que cada um de nós prefere, faz a soma e a subtração e depois decide aquilo que é no interesse coletivo. Esta ideia do funcionamento do processo político já não corresponde à realidade.

O segundo ponto tem a ver com a circunstância de o Estado também muitas vezes não conseguir ser eficaz na forma como consegue implementar na prática aquilo que são os objectivos das escolhas públicas. Portanto, nem o Estado é sempre dominado pelo interesse coletivo, nem aquilo que o Estado decide corresponde sempre ao interesse coletivo, porque aquilo que o Estado decide enquanto processo político depende da participação nesse processo. Nem os objetivos que se pretendem prosseguir pelo Estado são necessariamente mais eficazmente prosseguidos pelo Estado.

Esta falta de correspondência entre Estado e interesse coletivo e público, também existe entre mercado e liberdade. Nós hoje sabemos que o mercado não é sempre um espaço de liberdade. Aliás, as empresas enquanto mecanismos de organização de poder vertical são desde logo a primeira forma de concentração de poder de um mercado. Um mercado puro, no sentido idealizado, feito apenas das nossas transações, da nossa liberdade de decisão de cada um de nós entre nós, é um mercado que não existe e é impossível, nem funcionaria.

 

Portanto, um mercado também gere situações de poder. Nem sempre é um espaço de liberdade e muitas vezes é antes o Estado que tem de intervir para assegurar a liberdade do mercado. Ora isto significa que Estado e Mercado não coincidem assim com os ideais que tradicionalmente lhes são associados e que por sua vez são utilizados para distinguir entre uma preferência da Esquerda pelo Estado e da Direita pelo Mercado. O que é hoje fundamental é definir qual é a natureza da relação entre Estado e Mercado, essa é que é a verdadeira alternativa, e o que é que deve determinar as escolhas que constantemente temos de fazer entre Mercado e Estado. Não é uma opção generalizada, abstrata, entre Mercado e Estado que nos pode ajudar a esse respeito.

 

Esta análise que eu fiz já demonstra a inconsistência dentro das classificações tradicionais de Esquerda e de Direita. Os pontos de referência que poderiam ser utilizados para distinguir Esquerda e Direita já não fazem grande sentido hoje em dia. Mas isso não significa que não seja importante a existência de divisões e de alternativas políticas. Os tais pontos cardeais são fundamentais em termos de política e são fundamentais por várias razões.

Sabemos, hoje, que a diluição por exemplo da participação eleitoral, da participação política tradicional, não corresponde a uma menor falta de interesse das pessoas, dos cidadãos, da coisa pública. Não é. Há estudos que o demonstram. Isso significa, portanto, que há uma falta de correspondência entre os mecanismos e a forma como hoje o debate político se processa e aquilo que os cidadãos querem.

 

A falta de participação eleitoral e nos próprios partidos políticos são sobretudo sintomas de um problema da política hoje em dia. O risco é nós abdicarmos da política, esse é que é o verdadeiro risco e que se manifesta em vários pontos. Vou dizê-los de forma muito sumária para depois, eventualmente no debate, podermos continuar.

O primeiro é um aumento do radicalismo e da fragmentação política. Se não articularmos verdadeiras alternativas políticas, se não oferecermos outros pontos cardeais, então estamos a deixar espaço por um lado para as ideias radicais e por outro lado para a ideia de micropolítica que também está muito na moda. É a ideia de que a política, no fundo, é uma arbitragem entre diferentes interesses sectoriais, não é mais do que isso e este é o primeiro risco.

O segundo é o aumento do populismo. Se não tivermos propostas políticas mobilizadoras, novas, a simplicidade do populismo é atrativa e portanto a política será substituída por populismo.

A terceira é a dificuldade de distinguir entre a esfera da técnica e da política. Como a política hoje tem dificuldade em lidar com a realidade, porque a frequentemente bloqueia, uma consequência tende a ser esconder a política por baixo da técnica, fazer simular como opções técnicas opções que na realidade são políticas. Esse é um risco, mas também há o risco contrário, que é passar a achar que a política é a pura decisão da vontade, sem constrangimentos, sem relação com os factos, sem atender aos recursos limitados.

Direi que em Portugal, por exemplo, o nosso debate público é totalmente dominado por isto. Como se as opções políticas foram sendo tomadas em abstrato sem ser num determinado contexto que impõe constrangimentos, limites, escolhas e escolhas entre alternativas imperfeitas (para usar o nome do livro que sugeri).

 

O quarto ponto é o questionar da democracia representativa. Perde-se confiança nos processos tradicionais, a democracia deliberativa tende a bloquear, não consegue ser reformista e aparece em alternativas que eu diria que são apresentadas como milagrosas mas também têm muitos riscos. É que a idealização da democracia directa, por exemplo, tem vários riscos. Podemos, se quiserem, aprofundar durante o debate.

Último ponto para concluir: por um lado a minha posição é que a divisão Esquerda e Direita já não faz sentido hoje em dia porque as referências que são utilizadas para organizar essa divisão já não têm correspondência com a realidade. A divisão liberdade/igualdade e a alternativa Estado/Mercado, essas duas já não funcionam. Segundo, as divisões dentro dos que se dizem de Direita ou dentro dos que se dizem de Esquerda são superiores às divisões entre muitos que hoje são classificados como sendo de Direita e de Esquerda. Portanto, nesse sentido essa divisão deixa de ser útil.

Dizendo isto, é fundamental nós apresentarmos alternativas políticas, outros pontos cardeais. Acho que elas estão entre aqueles que basicamente adotam uma atitude a favor da preservação e até mesmo da concentração dos poderes e dos poderes estabelecidos e aqueles que se opõem a isso e entre aqueles que adotam uma visão de insularidade, estática, da comunidade política, dos direitos de uma comunidade política e aqueles que defendem uma visão inclusiva, aqueles que defendem os que estão dentro e aqueles que defendem também os que estão fora do círculo de direitos existentes. Mas se quiserem, no debate, eventualmente podemos dizer e discutir se estas são ou não novas opções.

 

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho
Muito obrigado. Vamos iniciar a parte das perguntas dos grupos. Vamos fazer blocos de duas perguntas. Vamos começar com o Marco Correia do grupo Verde a que se seguirá o Diogo Freire do grupo Bege.
 
Marco Correia

Boa tarde. Dado que é a primeira oportunidade gostava de cumprimentar toda a organização da Universidade de Verão na pessoa do Carlos Coelho. Gostava de cumprimentar os dois oradores, o Dr. Poiares Maduro e o Mestre Rui Tavares. Penso que é por aulas como a de hoje - penso que até falo por todos - que temos orgulho em ser da JSD e ter a oportunidade de ter um contraditório deste nível. Penso que o Mestre Rui Tavares engrandeceu a aula, portanto fico feliz pelo convite.

 

Gostava de pegar um pouco no final da intervenção do Dr. Poiares Maduro que falava em inconsistências da estrutura clássica de Esquerda/Direita. Realmente era um bocado por aí que nos tínhamos debruçado no nosso raciocínio. Ou seja, nós colocamos aqui um pensamento que basicamente é: um partido quanto mais ideologicamente é vincado mais é destrutivo na oposição. Ou seja, um partido quanto mais ideologicamente é consolidado - estamos a excluir provavelmente o espectro central, estamos a falar de partidos um pouco mais nos extremos - mais deveria saber precisamente, pela lógica, aquilo que quer porque tem uma solidez de ideologia e doutrina que devia permitir isso. Quando está na oposição em vez de apontar o caminho que provavelmente o norteia - digo "norteia” provavelmente porque sou do Norte, podia escolher outro ponto cardeal - assistimos constantemente apenas a ser destrutivo e a criticar.

 
Diogo Pessoa Freire
Boa tarde. A minha pergunta é: face à atualidade portuguesa de crise política e económica não devemos pensar em primeiro lugar nos interesses dos portugueses e não nos interesses partidários, as tais ideologias políticas? Devemos procurar um consenso entre a Esquerda e a Direita e não uma divisão.
 
Miguel Poiares Maduro

Acho que as duas questões acabam por colocar o mesmo tema sobre a mesa, diria. Ambas colocam em ênfase um tema que, aliás como sabem, me é muito querido. Fui definido por isso quando cheguei ao Governo, que é o consenso e o compromisso. Acho isso extremamente importante, mas acho a existência de alternativas políticas igualmente importante.

 

O que acho que é crítico em termos de cultura política e numa sociedade democrática evoluída é precisamente que seja natural no debate político e na prática política quer o antagonismo quer o compromisso. Portugal tem uma tendência talvez generalizada em todas as matérias de ser bipolar em tudo.

Relativamente ao compromisso ou ao antagonismo políticos, tradicionalmente ou é "se sou para fazer oposição, tenho de fazer oposição em tudo, porque qualquer compromisso, qualquer cedência, é visto como negativo e como tal estou a descaracterizar-me, a legitimar o Governo por exemplo e naturalmente se é negativo não posso fazer isso” - esse é o primeiro ponto. Mas por outro lado, frequentemente também quem fala de consenso e de compromisso parece que para existir um consenso tem de ser sobre tudo. Como se a nossa sociedade tivesse de ser consensual em todos os pontos. Não tem, nós podemos ter profundo antagonismo.

 

Vamos imaginar que o partido do Rui consegue ter representação parlamentar e naturalmente como iremos de novo ganhar as eleições estaremos no Governo. Eu espero que seja possível que apesar de eles nos fazerem uma forte oposição, que num outro tema possa haver acordo. Aliás, como eu acho que estas identidades de referência nalguns aspetos se questionam, até é natural que haja acordo. Mas para isso o compromisso político tem de ser valorizado.

Vou-vos dar um exemplo deste Governo em particular e no caso das autarquias locais. Recentemente fizemos um acordo com a Associação Nacional de Municípios Portugueses, um acordo global que incluía o fundo de apoio municipal e muitas matérias. Durante meses andou a discutir-se a possibilidade e tinha uma cobertura mediática enorme porque era a contestação. Quando o acordo foi feito não houve quase cobertura mediática. Se perguntarem à maior parte das pessoas ninguém sabe que houve um acordo político. Porquê? Porque a obtenção de um acordo não é valorizada.

 

Políticos que conseguem acordos, que conseguem compromissos, não são valorizados. Não são valorizados mediaticamente, não são valorizados pela sua própria base política dentro do partido e isto cria incentivos para fazer uma oposição generalizada. Não ter qualquer abertura a chegar a um compromisso, mesmo em matérias em que o compromisso é possível e isso é que é natural numa democracia. Podemos estar em desacordo frontal em imensas matérias, ter até um discurso político mais duro, mais violento - se quiserem - e dever ser natural, mesmo nessas circunstâncias, chegar e dizer "mas neste tema é possível chegarmos a um compromisso, chegar a uma solução que corresponde a este interesse e àquele interesse”. Isso deve ser natural.

 

Outra coisa que eu não percebo é que em Portugal se diz que estão a fazer um apelo ao compromisso nesse clima difícil. Mas é nesse clima difícil que se deve fazer um apelo ao compromisso. Isso deve ser natural. Se houvesse um consenso generalizado no país não era necessário fazer compromissos; eles são necessários quando há antagonismo e desacordo.

O que temos de ter é uma cultura política que saiba equilibrar bem essas duas dimensões. Pluralismo político, alternativas, antagonismo, debate e disponibilidade para o compromisso quando ele é possível e sobretudo também necessário.

 
Rui Tavares

Bem, o Miguel passou uma parte da intervenção dele inicial a tentar desfazer um argumento que já tinha sido desfeito que é de que a Esquerda é pró-Estado e que a Direita é anti-Estado, ou que a Esquerda é pró-igualdade e a Direita pró-liberdade. Se assim fosse - lembram-se no que eu tinha dito na minha primeira intervenção - não precisávamos desses nomes, dizíamos estatistas e anti-estatistas, igualitários e libertários.

 

Portanto, especificamente foi dito que a definição tem de ser mais fina do que isto, mais sofisticada do que isto. Não podemos olhar para factos culturais e querer descrevê-los como quem descreve os elementos numa tabela periódica e que o peso atómico deste é "x”, portanto é de Esquerda, o peso atómico é "y” e por isso é de Direita. Não, nós descrevemos correntes de pensamento, correntes filosóficas, muito mais como descrevemos estilos literários ou artísticos, e portanto têm definições que são elas próprias muito mais sofisticadas.

Então, como eu dizia na intervenção inicial, visões diferentes daquilo que é a igualdade, daquilo que é a liberdade e do que é o interesse nacional - para responder a uma das perguntas.

 

Um filósofo italiano, Norberto Bobbio, dizia que tanto a Esquerda como a Direita se preocupam com a igualdade, mas a Esquerda preocupa-se desta forma - e sigam esta descrição porque precisamente ela é mais narrativa, não é achar um ponto de dizer é de Esquerda ou é de Direita: a Esquerda acha que em geral os humanos são mais iguais do que desiguais naturalmente e que, portanto, essa deve ser uma preocupação política porque é possível adaptar, contrariar, as desigualdades que ainda existem; que essa é uma função da comunidade política e que é uma função positiva da comunidade política ao passo que as desigualdades raramente, ou nunca, têm funções positivas, são sempre negativas. Em quarto lugar, que no decurso da História devemos caminhar para uma diminuição progressiva das desigualdades.

A Direita acha que naturalmente sempre houve desigualdade, sempre haverá desigualdade, claro que nos podemos preocupar com isso, claro que podemos mitigar a desigualdade, mas não vamos resolver o problema da desigualdade. A Direita acha que algumas políticas para tentar remediar, combater, mitigar e até erradicar algumas igualdades são perniciosas. A prova está na intervenção do Miguel que disse: as políticas da Esquerda estatais criaram desigualdades. É um dos argumentos de um livro de outro filósofo, Albert Hirschman, que diz que a Direita em geral tem três argumentos: o da futilidade, "não vale a pena fazer isso, as desigualdades estão lá, vão ficar lá”; o da perversidade, "nós vamos tentar ter políticas para combater a desigualdade e depois fica pior, mais vale não fazermos”; e um outro argumento que é do risco, "não, não façam isso, é muito arriscado, não deem igualdade para o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque não se sabe o que vai acontecer mais à frente”.

Estes três argumentos típica e correntemente todos os dias são utilizados pela Direita. Um deles foi utilizado pelo Miguel, o que prova e demonstra o que eu vinha dizer.

 

Ora, a Direita acha também que as desigualdades variam conforme o tempo, mas não há uma linha histórica para diminuir ou erradicar as desigualdades. Isto, se forem confrontar com posições políticas quotidianas, no que se está a passar hoje em dia em Portugal, é precisamente assim.

Na liberdade a mesma coisa: a Direita vê muito mais a liberdade como não-interferência. Se o Estado não interferir há liberdade. A Esquerda vê muito mais a liberdade como não-dominação, ou seja, eu não sou livre se estiver dependente da boa-vontade de outrem, mesmo que esteja confortável. Ou seja, mesmo que esteja a recibos-verdes e esteja a ganhar muito bem a recibos-verdes, esteja confortável neste mês ou no próximo, estou sempre dependente da boa-vontade de outrem. Isso para a Esquerda é uma situação de dominação e é precisamente aquela que desde há 225 anos a Esquerda se posicionou por combater. Logo a seguir a aprovarmos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a Esquerda disse que faltavam lá os direitos económicos e sociais. A Direita disse que estava bom assim, desde que não interferíssemos, a Economia tomaria conta de si.

 

Mas não é Estado e anti-Estado, liberdade e igualdade, mas definições diferentes do que isso é. Inclusive definições diferentes do que é o interesse nacional e daí um compromisso ou não. Um partido ideologicamente vincado pode evidentemente ser até um partido que queira procurar mais o compromisso. Por exemplo, se o PSD estiver interessado em defender mais a posição do Tribunal Constitucional em Portugal é um compromisso que eu assumiria de bom grado, porque acho que isso é importante para um Estado de Direito (o PSD tem atacado o Tribunal Constitucional, o que é deletério e pernicioso para o Estado de Direito). Era um consenso que poderíamos ter e portanto, espero que o PSD se aproxime desse consenso.

 

Mas também quero dizer isso, que por exemplo no caso de um partido como o Livre (que se definiu como do meio da Esquerda) ser ideologicamente claro é um factor de honestidade em relação às pessoas, porque precisamente permite-vos a vocês orientarem-se em relação a nós e nós em relação a vocês. Portanto, a família natural de um partido que está no meio da Esquerda são os outros partidos da Esquerda e não os partidos do Centro-Direita e da Direita. Serão partidos como o PS, como o Bloco de Esquerda e o PCP e não como o PSD. Isto ajuda à honestidade e ao interesse da democracia e não a misturar as coisas nem desorientar as pessoas.

 
Dep.Carlos Coelho
Grupos Laranja e Azul, João Carlos Barbosa.
 
João Carlos Barbosa

Boa tarde a todos os presentes. Queria dar aqui um cumprimento especial aos nossos oradores, Ministro Miguel Poiares Maduro e Dr. Rui Tavares.

A minha pergunta vai no seguinte tema: existem cada vez mais movimentos de cidadãos independentes que se juntam para fazer candidaturas partidárias e teoricamente sem uma ideologia pré-definida. Nisto estou um bocadinho à vontade porque tive como oposição numa Junta à qual me candidatei e ganhei a um movimento desses independentes. De facto, queria saber, já que nós temos também oposição em assembleias municipais e de freguesia, se seria expectável que houvesse a permissão de movimentos independentes candidatarem-se também à Assembleia da República e, quem sabe, ao Parlamento Europeu.

Obrigado.

 
Dep.Carlos Coelho
Obrigado. Jéssica.
 
Jessica Mendes Ferreira

Boa tarde, Dr. Miguel Poiares Maduro, Mestre Rui Tavares e restante mesa.

A pergunta que vos dirigimos é a seguinte: mesmo que faça sentido a existência dos conceitos de Esquerda e de Direita não são estes termos motivo de estigma, criando inclusive preconceitos nos jovens que acabam por ficar com ideias pré-concebidas para a sua atividade política?
Obrigada.

 
Rui Tavares

Se fizermos em todo o mundo perguntas às pessoas sobre diversas coisas da realidade política de todos os dias: vale a pena cobrar mais impostos para poder redistribuir mais, ou é melhor deixar os impostos mais baixos para que as empresas tenham mais lucros e a redistribuição ocorrer de outra forma, de cima para baixo? Como é que se deve fazer em relação à escola pública? Como é que deve fazer em relação à emigração, sexualidade, aborto e uma série de questões?

 

Pedir às pessoas que em relação a determinadas frases como "a homossexualidade é sempre desculpável”, ou "a homossexualidade nunca é desculpável”, a maior parte das pessoas não vão posicionar-se nem num extremo nem noutro, mas se pusermos uma escala de 1 a 10 as pessoas posicionam-se. E depois fazemos a experiência de pegar nessas respostas, ordená-las segundo um eixo Esquerda/Direita e perguntar a essas mesmas pessoas "de 1 a 10 vocês estão mais à Esquerda ou mais à Direita?”, acontece uma coisa curiosa. Aquilo a que as pessoas chegaram através da perguntas pelos vários temas possíveis é mais ou menos correspondente à divisão linear entre Esquerda e Direita.

Uma pessoa que está no meio da Esquerda acaba por dar respostas que estão no meio da Esquerda.

 

O que é mais interessante ainda, que tem sido testado nos últimos anos, é que isto cada vez mais se comprova em mais países do mundo. Países, por exemplo, que tinham uma tradição de política só regional, ou uma política "coronelista” - como se diz no Brasil - e que tinham pouco uma divisão Direita/Esquerda, começam a ter uma divisão mais clara de Esquerda e Direita.

 

Mesmo quando não falamos de países mas falamos de conjuntos de países, também, com a recente eleição europeia que foi também para o Presidente da Comissão, vimos que havia portugueses de Direita a apoiarem candidatos de Direita e alemães de Esquerda a apoiarem candidatos de Esquerda, como portugueses de Esquerda também. Essas pessoas encontravam-se em geral no mesmo tipo de respostas ao mesmo tipo de perguntas. Portanto, isso significa que essa divisão é válida para as pessoas e acima de tudo que ela, ao contrário do que eu creio que estava implícito na segunda pergunta, estigmatiza menos as pessoas, se entendermos isso desta forma.

Se não tivermos Esquerda e Direita e as divisões passarem todas num grande centro como há bocadinho o Miguel dizia "os extremos são mais diferentes entre si do que os moderados das duas partes”, a divisão passa a ser "não, não vamos governar segundo a Esquerda ou a Direita, mas segundo quem é competente e quem é incompetente”, sendo nós sempre os incompetentes claro. Ou em que defende o interesse nacional e aí nós somos os patriotas e os outros anti-patriotas e por aí adiante.

 

Estas divisões, do meu ponto de vista, são estigmatizantes e degradam mais a política do que aquelas que são divisões que chegaram com a evolução normal da democracia e que têm no seu grande referente o próprio Parlamento como representação do diálogo que ocorre na sociedade. Evidentemente que - para responder à primeira pergunta - pode haver encontros entre pessoas de espectros diferentes para defenderem aspectos comuns, como por exemplo, uma maior presença dos independentes. Por exemplo, para mim o grande problema é o monopólio das direções partidárias sobre as escolhas de deputados. Isso pode-se resolver de várias formas, as listas de independentes é só uma delas, listas abertas é outra, realização de primárias abertas é outra e isso pode unir gente de espécies diferentes, mas principalmente por uma razão: porque existe na evolução natural da política momentos de hegemonia de um lado ou de um outro. O que é que isso significa? Momentos em que um determinado lado fez com que as suas ideias passem por naturais. O Miguel referia-se a esse aspeto no pós-ditadura em Portugal, não é? E é por isso que os partidos saíram todos com um nome de Esquerda.

 

Vou deixar esta ponta que vou querer repegar noutra intervenção e o que eu defendo é que desde há 30 anos o eixo deslocou-se de tal forma para a Direita que a Direita tende a achar que a sua visão das coisas é simplesmente natural. É por isso que necessitamos de um movimento inverso que feche esse capítulo e que abra um num âmbito mais progressista.

 
Miguel Poiares Maduro

Concordo com o Rui num ponto que é: se a conclusão de não termos uma divisão Esquerda/Direita, uma alternativa política fosse remeter tudo para questões de âmbito de tecnocracia isso seria extremamente arriscado, mas acho que fui claro no sentido que acho que é fundamental para o funcionamento da democracia preservarmos o pluralismo político. Portanto, é a ideia de diferentes projetos e ideias políticos. O que eu acho é que elas são diferentes e que as duas grandes divisões que em realidade hoje em dia contam é por um lado entre aqueles - como eu disse - defendem no fundo a preservação do poder existente e aqueles que se opõem a isso.

 

Os primeiros tendem a preferir no fundo opções centralizadores, mais centralismo na organização da sociedade, protecionismo económico, manutenção das relações e das hierarquias de poder existentes, premiar mais a fidelidade do que a antiguidade no modo de organização da sociedade. Os segundos, no fundo correspondem àquilo que eu e penso que nós em geral pertenceríamos, que são aqueles que defendem mais descentralização, uma economia e uma sociedade mais abertas, premiar o mérito em relação a outros aspetos como a fidelidade ou a antiguidade, reforçar a concorrência, desafiar no fundo as redes de poder existentes.

 

Acho que a dificuldade que a Esquerda tem hoje, precisamente com o liberalismo, a discussão que dentro da própria Esquerda existe entre aqueles que dizem que na realidade ser de Esquerda hoje é ser liberal, por exemplo, (mesmo no ponto de vista mais da relação do entendimento da Economia), tem a ver com a desestabilização que existe dentro desse próprio núcleo relativamente a estas ideias. E à consequência de muitos aspetos de políticas que tradicionalmente os partidos que se classificam de Esquerda assumiram, hoje em dia serem políticas que muitos daqueles que ainda dizem pertencerem à Esquerda acham e vêem como tendo consequências que são, por exemplo, de promoção da desigualdade e não da igualdade.

É por isso, também, que a segunda grande divisão tem a ver com uma concepção no fundo, estática ou dinâmica dos direitos de uma sociedade.

 

Há aqueles que tendem a achar que temos de organizar a sociedade para proteger os direitos existentes, os que estão dentro, relativamente aos que estão fora que são as gerações futuras mas também os estrangeiros, por exemplo. Essa é outra grande divisão. Como é que podemos achar que dentro de uma mesma Esquerda faz sentido haver quem é a favor da integração europeia, da globalização, e quem se opõe? Essa divisão hoje em dia é muito mais relevante que outras que se continuam a querer utilizar a esse respeito. É uma divisão que entra em contradição com aspetos que a própria Esquerda poderia assumir. Vemos, por vezes na Europa, alguns dos Estados que são mais resistentes ao alargamento dos direitos do seu Estado Social aos cidadãos de outros Estados são Estados que são classicamente vistos como de Esquerda.

Lá está, é essa precisamente a contradição com aquilo que o Rui definiu como sendo de Esquerda. Mas frequentemente são partidos que mais tradicionalmente estão à Esquerda que defendem a manutenção dostatus quo, daqueles que já têm direitos ou num Estado, ou numa sociedade, ou num tempo, relativamente aos outros que ainda não os têm. Essa divisão hoje é muito mais relevante do que algumas divisões que o Rui mencionou.

 

Quanto à questão da reforma do sistema eleitoral, acho que - até pelas razões que mencionei dos riscos que temos hoje, do qual a fraca participação eleitoral é apenas um sintoma e a fraca participação dos partidos é outro sintoma -, temos realmente de repensar a organização política da nossa sociedade. Não digo apenas nos mecanismos de participação, digo a organização política da nossa sociedade, mas não podemos é achar - e às vezes em Portugal tendemos a cair em soluções simplistas - que é uma pura questão de reforma de sistema eleitoral, não é, é muito mais ampla que isso, é uma questão de cultura política.

 

Aquilo que eu falei antes sobre saber equilibrar a dimensão de conflito político e a dimensão de compromisso é um aspeto importante, mas há outros. Temos de fazer essa reflexão. Não vou entrar aqui, por várias razões, aquelas que seriam intuitivamente algumas das referências que eu tinha na matéria, mas temos de fazer essa reflexão de forma alargada. Temos de ver bem em termos de sistema político, mas também em termos de qualificação e capacitação da classe política, de funcionamento das instituições políticas. Se calhar no Parlamento, tão importante quanto a questão da representação dos deputados na relação com os eleitores é a questão das condições de organização do trabalho parlamentar que é frequentemente desvalorizada. O Rui e o Carlos seguramente sabem que no Parlamento Europeu as condições de organização do trabalho dos deputados permitem-lhes ter uma valorização desse trabalho em termos dos relatórios que fazem, do apoio técnico que têm, que provavelmente em Portugal não existe no Parlamento. E nós nunca pensamos nisto, pensamos que resolvemos o nosso sistema político sempre que reformamos o sistema eleitoral, ou com uma solução que vai do dia para a noite, de um momento para o outro e não é assim que conseguimos isso.

 
Dep.Carlos Coelho
Grupos Castanho e Encarnado. Luís Pinho da Costa e Luis Serras de Sousa.
 
Luis Pinho da Costa
Boa tarde. Não referindo ao Partido Livre, por ser um partido recente, mas à generalidade dos partidos com mais visibilidade: não acham que, atualmente, a clivagem Direita/Esquerda ou a clivagem proposta noutros pilares não estão tão vincados por uma fraca posição ideológica e uma maior preocupação com medidas de curto prazo que se traduzem, se calhar, numa oposição - seja de um partido ou de outro - mais destrutiva do que construtiva? Por norma uma oposição é contra tudo o que um Governo propõe em vez de se calhar tentar pegar e tentar melhorar propostas. Essa falta de uma ideologia marcada como acontecia provavelmente a seguir ao 25 de Abril, não prejudica uma visão de longo prazo para o nosso país?
 
Luis Serras de Sousa

Boa tarde. Antes de mais, cumprimentar o Professor Poiares Maduro e o Doutor Rui Tavares que mostra uma cultura democrática bastante elevada por vir aqui até nós. No vosso entendimento estão a começar a esbater-se as diferenças doutrinárias entre a Esquerda e a Direita. Qual deve ser então o raciocínio lógico de um jovem que está motivado e quer fazer política, quer entrar numa juventude partidária e quer fazer política na sua freguesia, no seu concelho, no seu distrito, no seu país?

Obrigado.

 
Miguel Poiares Maduro

Vou começar pela questão do curto prazo. Esse é um dos grandes desafios que temos hoje no nosso sistema democrático e no funcionamento da política. Aliás, somos um país (e ultimamente toda a gente diz isso) em que toda a gente fala de reformas, mas nunca ninguém concretiza exatamente o que quer dizer com reformas. O que é muito prático: todos são a favor de grandes reformas, sobretudo grandes, pois se forem pequenas aparentemente não servem, têm de ser grandes reformas; que nunca se concretiza exactamente o que são, porque a partir do momento em que se concretiza ela deixa de ser vista como uma reforma para passar a ser vista como um ataque a um conjunto de direitos ou interesses estabelecidos. Essa é uma das dificuldades de uma grande reforma, que induz na política incentivos de curto prazo.

 

As reformas produzem benefícios que são difusos, que são disseminados por toda a sociedade e que são também dilatados no tempo. Ou seja, frequentemente as vantagens de uma reforma não são imediatamente perceptíveis, ou porque são muito difusas ou porque são dilatadas no tempo. O custos, pelo contrário, tendem a ser concentrados. Isto significa que uma reforma vai gerar muito mais oposição do que apoio. Essa é uma das grandes dificuldades da democracia hoje em dia, porquê? E tem a ver precisamente com o que eu dizia antes, com a participação política ter a ver com o grau de voz, de protesto, de influência, que leva a que frequentemente a democracia esteja a entrar em bloqueio pela dificuldade de fazer reformas no contexto desta assimetria entre os benefícios e os custos da reforma. É extremamente difícil, nesse contexto, fazer reformas.

 

Este Governo tem-no feito, ao contrário do que por vezes se diz. Podia dar-vos exemplos. Dou um exemplo recente que tem a ver com a redução da despesa. Oiço falar, recentemente, que só se reduziu a despesa em salários e pensões e que não se conseguiu reduzir mais nenhuma despesa e que foi uma redução cega de despesa. Na realidade, a despesa primária, excluindo remunerações, foi reduzida por este Governo em mais de seis mil milhões de euros ao ano. Portanto, houve uma redução da despesa muito superior em áreas que não dizem respeito a salários e pensões do que nessas áreas. Primeiro ponto. Mas parece, ouvindo, que não é assim. Segundo ponto: a área em que houve maior redução de despesa em proporção é no consumo intermédio, onde por vezes estão aquilo que normalmente se designa de "gorduras do Estado”. É importante saber que aquilo que são consumos intermédios nem sempre são "gorduras do Estado”, por vezes são prestações de serviços na Saúde e noutras áreas.

É importante sermos honestos no debate a esse respeito e não simplificarmos essas coisas.

 

Esses são dois exemplos que eu vos podia dar, mas na realidade um dos desafios mais difíceis na política hoje em dia é esta dificuldade muito grande: Temos de conseguir mobilizar os cidadãos para reformas no contexto em que frequentemente os benefícios das reformas não são imediatamente perceptíveis para eles e os custos são. Isso exige mais inteligência política, mais pedagogia, mas também coragem política. Um Governo, qualquer maioria, deve governar sempre na expectativa de poder vir a ser premiado pelos cidadãos e ser reeleito, mas não deve governar para essa eleição. Deve governar na esperança que o seu trabalho seja reconhecido pelos cidadãos dessa forma, mas não pode governar apenas para isso. Esse é um dos problemas daquela idealização das formas de participação democrática que vão para lá da representação participativa. Algumas delas são importantes. A democracia representativa tem aspetos fundamentais que nós temos de preservar, um deles é esse da mediação temporal, da ponderação, de introdução de reflexão no processo de deliberação democrático. Se tivermos uma democracia que responde apenas "ao sabor do momento” é uma democracia que vai adotar políticas de curto prazo e portanto nunca vai conseguir fazer reformas.

 
Rui Tavares

Muito obrigado por estas duas perguntas, elas são muito compatíveis, permitem responder às duas ao mesmo tempo.

Não podemos confundir ferramentas com visão de mundo. Uma visão do mundo é uma coisa complexa, rica, e uma ferramenta não passa de uma ferramenta. Quando o Miguel diz que a Esquerda é contra uma Economia aberta, isto não é inteiramente correto. A Esquerda é contra uma Economia aberta em condições, por exemplo, nas quais não há igualdade de direitos laborais como entre Portugal e a China. Portanto, se nos disserem que poderá haver à escala nacional algo que desempenhe o mesmo papel que desempenha um tribunal do trabalho em Portugal, que pode haver salários mínimos - neste momento não à escala nacional, mas defendemos à escala europeia, por exemplo -, aí significa que a Esquerda já admite ser a favor de uma Economia aberta.

 

Porque a Economia ser aberta ou fechada não faz parte da sua visão do mundo; pode ser uma ferramenta para uma visão do mundo aonde as questões relativas à igualdade são naturais, elas podem ser combatidas pelo Estado, fazem parte da Esquerda e não fazem parte da visão da Direita porque as visões do mundo que podem ter pontos de contato têm também grandes separações. São quase como linguagens diferentes.

Quando, por exemplo, a certa altura Margaret Thatcher disse que a sociedade é uma coisa que não existe, isto é uma visão que é nitidamente aberrante à Esquerda, pelas razões que já expliquei. Mas decorre desta visão dela, ela dizer que a sociedade não existe e a outra segunda coisa que é "não há alternativa”. Porquê? Porque como para ela a sociedade não existe, não precisa de cuidar de determinados tipos de interesses que na visão do mundo da Esquerda precisam de ser cuidados e portanto pode cuidar de outros. "Vamos fazer andar bem a Economia, porque esta sim é uma coisa que existe”.

 

Desde a velha divisão do capitalismo e socialismo no século XIX a prioridade da Esquerda é a sociedade e não a Economia de tipo financeiro. Desse ponto de vista, muitas vezes acho que as pessoas de Direita que dizem que não há já grande razão para a divisão entre Esquerda e a Direita dizem isso porque estão numa situação de grande vantagem depois dos últimos 30 anos por que passámos. Foram anos dominados por uma visão de Direita, que podemos respeitar por ser de Direita mas que não era uma visão do tipo daquela que apresentámos aqui, dos competentes contra os incompetentes.

 

A senhora Thatcher não disse "eu sou competente, os outros são incompetentes”, ela disse claramente "eu venho de onde venho, sou de Direita e quero implementar este programa”. O senhor Reagan a mesma coisa e da mesma forma do lado da Esquerda os grandes líderes não disseram "eu sou competente, elejam-me porque sou competente”. Franklin Roosevelt disse: "Eu sou progressista, os outros são conservadores e eu vou implementar um programa progressista, por isso as pessoas que acreditam neste programa, que se sentem mobilizados por ele façam favor de se levantar e de lutar por ele”. Na Suécia, Olof Palme também o mesmo problema.

Nós, à Esquerda, temos exemplos que são mais antigos. Os recentes, apesar de tudo que existem, oObamaCarenos Estados Unidos, o Bolsa Família no Brasil são o tipo de medidas mitigadoras, que combatem ou até erradicam determinados fenómenos exatamente da forma que preveríamos que a Esquerda o faz. Porque - e para responder à pergunta do lado do curto prazo - para a Esquerda, não tenhamos ilusão, estes últimos 30 anos foram uma desgraça social. A desregulação no mercado laboral fez da maior parte das pessoas que trabalham hoje em dia no Ocidente, pessoas que não sabem o que lhes vai acontecer daqui a um mês, ou daqui a um ano, não podem planear. Porque o que aconteceu ao nível da desregulação em cima no topo do capitalismo financeiro provocou aquilo que está a acontecer agora.

 

Portanto, se há uns anos se achava que devia haver uma banca pública e durante 30 anos uma hegemonia da Direita disse "não há”, hoje em dia começamos a perguntarmo-nos se os bancos não são umas coisas demasiado importantes para estarem nas mãos de um ou outro irresponsável privado. E os próximos 30 anos - para pensar a longo prazo - se continuarem como estamos vão ser uma catástrofe pior ainda. Porquê? Porque a Medicina pode começar a ser desigual, vêm aí novos tratamentos médicos que são muito caros mas que podem fazer distinguir ricos e pobres de uma maneira que podem tornar os ricos com mais 20 ou 30 anos de esperança de vida e menos aos pobres, como estávamos no século XIX e não queremos isso.

 

Porque quando entrar a robótica no mercado de trabalho, se continuarmos com um mercado de trabalho desregulado, algumas pessoas vão ter o azar de competir comrobots, ou seja passam a uma condição de praticamente escravos e as outras pessoas, que tiverem a sorte de não competir comrobotsaguentam-se mais um bocadinho.

Se não interrompermos o tipo de capítulo que foi iniciado nos anos 80 até hoje em dia e regularmos o mercado do trabalho de uma forma que permita fazer frente a essas vagas que aí vêm, a nossa vida, a vida da vossa geração, vai ser substancialmente pior. Por isso é que é preciso ser honesto acerca da visão do mundo que se apresenta e para onde é que ela se dirige.

 
Dep.Carlos Coelho
Grupos Roxo e Rosa. José Miguel Anjos e Bárbara Lopes.
 
José Miguel Anjos

Boa tarde. Nós gostávamos, antes de mais, de saudar os oradores e todo o auditório.

Acreditamos que as medidas fraturantes nos 40 anos de Democracia em Portugal tiveram como grande intervenção e base os partidos políticos. O Rui Tavares tocou aqui no ponto da política de Esquerda poder estar mitigada em vários partidos políticos e portanto uma ideologia que podia estar concentrada em três ou quatro partidos está envolvida em muitos movimentos, muitos deles que podem não ter a sua ideologia completamente definida mas podem ter apenas uma linha de pensamento político.

 

Portanto a questão que gostaríamos de ver respondida é: quais são os perigos para a democracia, para a construção política e democrática de projetos pela existência dessa mesma mitigação da ideologia e da dificuldade de criar consensos entre a Direita e a Esquerda com uma Direita concentrada e uma Esquerda que está distribuída por vários movimentos?

 
Bárbara dos Santos Lopes

Boa tarde. "Não faz muito sentido a clivagem Direita/Esquerda”, cito Paulo Portas, "cada vez mais assistimos à união de partidos, à escolha de coligações nas autarquias, as pessoas votam mais pelo cabeça de lista do que propriamente na ideologia e naquilo que todos prometem. Tudo isto leva a uma descrença, a uma perda de interesse da opinião pública pela Esquerda e pela Direita”.

Sendo assim, como se justifica que a clivagem na assembleia seja tão forte se vemos que no poder local há coligações de toda a forma e feitio?
Obrigada.

 
Rui Tavares

Creio que exatamente porque ela no poder local se tornou menos necessária, a clivagem Esquerda/Direita, por causa da evolução histórica de que eu falava há pouco. Há 100 ou 200 anos as clivagens Esquerda/Direita eram muito importantes nas cidades e vilas portuguesas. Havia ainda um nobre que tinha direitos especiais para fazer herdar apenas a um filho e não às filhas, apenas a um mais velho e não aos outros. Os plebeus tinham um percurso diferente, uns podiam votar outros não, etc. Portanto ao nível local as presenças de castas que existiam na sociedade como um todo sentiam-se de uma forma muito premente. Hoje em dia pode ser que precisamente pelo efeito daquilo que eu simplificadamente chamei "a modernidade” que nos torna a todos cidadãos de uma determinada entidade política, que pode ser um Estado no caso de Portugal, ou pode ser uma entidade diferente como a União Europeia de que somos também cidadãos sem que ela seja um Estado.

 

As diferenças foram mitigadas a nível local, mas o nosso nível local é muito alargado. Ou seja, aquilo que vai prejudicar verdadeiramente a nossa vida em Castelo de Vide, em Braga, no vale do Lima, nos Estaleiros de Viana do Castelo, etc., é o que é que estão a fazer no Vietname ou na China neste momento. Aí, mais uma vez, volta a ser necessária uma visão política para que nos grandes conjuntos de pessoas, que somos, nós nos possamos orientar a dialogar. Isso evidentemente necessita dos tais pontos cardeais, mas foi algo que desde o início tivemos sempre de acordo.

 

Portanto, a pergunta que há a fazer agora é: quem tem respostas para o que aí está e para o que aí vem? A minha caracterização é de que neste momento ambos os campos se apresentam vazios de ideias com um perigo fundamental: a Direita está vazia de ideias mas está no poder, a Esquerda está vazia de ideias mas não está no poder.

Acho que é mais compreensível o vazio de ideias na Direita porque esta esgotou-se, tem estado no poder nestes 30 anos e sucessivamente aquilo que foi tentando deu certo naquilo que achou que devia dar certo. De facto, o tipo de capitalismo de alta velocidade que nós temos, aumentou várias vezes, multiplicou-se, e isso possibilitou crescimentos em determinadas áreas mas depois ocrashque deu, etc., e a partir de agora encontra os limites do seu poder.

O capítulo conservador, neoliberal, se quiserem neoconservador também em termos culturais e de relações políticas internacionais esgotou-se.

 

Acho que o facto da Esquerda neste momento não ter uma ideia de Governo e uma ideia de poder, ou seja não só uma alternativa que poderia ser implementada mas um programa mesmo para implementar e no caso de Portugal já daqui a um ano, é algo que é grave para quem é de Esquerda evidentemente mas para o resto da sociedade também.

Porque precisamente para que a nossa Democracia avance é preciso que os dois lados, às vezes em consenso em coisas fundamentais, já dei aqui um exemplo, o da Constituição, às vezes em divergência porque as divergências também são aquilo que nos faz avançar, tomem o seu lugar. E neste momento acho que a Direita em particular em tudo o que tem a ver com os níveis supranacionais (europeu, mundial) está de tal forma esgotada que está perante uma realidade com a qual não sabe mais manipular em grande medida. Aconteceu como acontece com o aprendiz de feiticeiro, as ferramentas voltaram-se contra os próprios aprendizes e é essencial, urgente, que a Esquerda desenvolva isto.

Para que vocês não tenham a ideia que eu venho aqui bater na Direita, acho que há sempre uma coisa que a pessoa tem de fazer num debate estando do outro lado, dizer também quais são os defeitos do seu. Os grandes defeitos da Esquerda em Portugal e na Europa são não terem entendido ainda que as grandes divisões do passado já lá vão e neste momento se quiserem preservar o essencial daquilo que é identitário para elas: o Estado Social e mais, prepará-lo para fazer frente ao que aí vem. Porque nitidamente o que aí vem é muito maior do que aquilo que se passou até agora. Já vos dei exemplos: a robotização, a Saúde, mas podia dar-vos outros.

 

Quer dizer, nós estamos com uma guerra em plena Europa. Há 100 anos atrás nós precisávamos que a Esquerda e a Direita dessem respostas. A Esquerda tinha uma boa resposta na altura, que era a greve geral dos europeus para impedir a guerra, mas infelizmente o senhor que defendia isso, Jean Jaurès, foi assassinado poucos dias antes da I Guerra Mundial. Mas temos hoje em dia uma situação demasiado grave para a qual não se podem apresentar ambos os campos políticos, um esgotado e no poder e o outro sem ideias suficientemente mobilizadoras como as antigas das oito horas do trabalho, das férias, da Segurança Social, para que as pessoas votem nelas e queiram conquistar novas mudanças progressistas.

 
Miguel Poiares Maduro

Esta intervenção do Rui e também a anterior, direi sobretudo até a anterior, permitem-me questionar precisamente a questão da divisão entre Direita e Esquerda que acho que acaba por trazer mais confusão. Por exemplo, o Rui utilizou há pouco de forma diferenciada as expressões liberal e neoliberal. Eu tenho grande dificuldade em saber exatamente o que é neoliberal porque é frequentemente a expressão que se usa para desqualificar um ponto de vista sem se dizer exatamente aquilo que se quer dizer. Não estou a dizer que foi a utilização que fez o Rui, pois ele estava a falar em abstrato. Mas essa distinção é muito importante de se fazer.

 

Acho que normalmente quando se fala de Neoliberalismo, se eu depreendo bem o que se quer dizer com isso, é não permitir que o Estado interfira na liberdade de funcionamento do Mercado. Ora, a visão liberal pode exigir exatamente o contrário. A visão liberal é garantir um mercado livre e isso pode exigir a intervenção do Estado.

Portanto, exatamente o contrário daquilo que é atribuído à visão neoliberal. Essa distinção é fundamental fazer. Eu sou liberal, não sou um neoliberal nesse sentido.

 

Como eu disse, acho que a grande divisão hoje em dia é entre aqueles que defendem, no fundo, as estruturas de poder existentes - os que estão dentro - e aqueles que defendem a necessidade de garantir os direitos dos que estão fora e de impedir formas de concentração de poder. Portanto, garantir a liberdade no Mercado, mas garantir também um Estado que não protege os interesses de alguns à custa dos interesses de outros. Acho que esta, no fundo, é a grande distinção.

Mas o Rui disse uma coisa que me permite pôr em causa, que para mim é extraordinária, que é: "A Direita esteve no poder nestes últimos 30 anos”. Não sei se estavas a referir a Portugal ou a nível internacional. Em Portugal, a primeira classificação é que isso significa que o Partido Socialista é de Direita. Mas é possível e só demonstra como então isto deixa de fazer sentido em termos de referências. Podemos classificar qualquer coisa de Direita e depois dizemos "são de Direita”, passa a ser um movimento circular, como eu dizia. Sendo assim perde utilidade.

Se estava a referir-se a nível internacional, não sei. Quer dizer, os Estados Unidos da América foram mais governados por democratas do que republicanos, mas se calhar os democratas do ponto de vista do Rui também são de Direita. Os democratas são claramente liberais, portanto em Portugal um partido democrático era um partido de Centro-Direita, senão de Direita.

 

Mas isto demonstra a dificuldade de fazer esta divisão. Mas digo mais, o Rui deu um exemplo de uma política de Esquerda, oObamaCare, que no fundo nem é um serviço nacional de saúde, é uma aproximação a esse serviço. A Esquerda frequentemente apresenta o Serviço Nacional de Saúde como uma criação e bandeira da Esquerda. O Serviço Nacional de Saúde foi concebido por um conservador no Reino Unido, foi implementado por um governo trabalhista, mas a sua concepção e aprovação foi feita por um governo conservador de Direita, dir-se-ia. A Segurança Social que é também é vista hoje em dia como uma conquista da Esquerda, foi introduzida pelo Bismarck que era um político, esse bem conservador.

Portanto, isto demonstra bem a dificuldade de estabelecer estas diferenças.

 

A questão da regulação do mercado laboral é o último ponto que eu queria mencionar. Acho que esse é um bom exemplo de como podemos estruturar uma discussão interessante em moldes novos.

É claro se nós flexibilizarmos a legislação laboral isso tem um custo, tem mais instabilidade para as pessoas. A estabilidade é importante, é valorizada pelas pessoas, nas vidas das pessoas, e não podemos ignorar. Mas também sabemos uma coisa: essa flexibilização também garante um aumento do emprego, mais acesso de outros ao mercado do trabalho.

A ponderação real que temos de fazer é qual é o grau de estabilidade que estamos dispostos a comprometer, a limitar, para garantir que mais tenham acesso a emprego. Essa é a opção real a fazer, por exemplo numa política desse género. E não acho que esse seja uma opção que possa ser feita em termos das categorias e etiquetas tradicionais de Esquerda e Direita. Nesse sentido, se não se importam, vou dedicar aqui um poema ao Rui de Alexandre O’Neill. Quase me esquecia disto.

 
Rui Tavares
Não é o do cherne?
 
Miguel Poiares Maduro

Não, não é. [RISOS] É de peixes de águas menos profundas. O poema do O’Neill não o vou ler todo mas vou ler parte e é assim: "À esquerda da minoria da direita a maioria/do centro espia a minoria/da maioria de esquerda/pronta a somar-se a ela/para a minimizar/numa centrista maioria/mas a esquerda não deixa./Está à espreita/de uma direita, a extrema,/que objectivamente é aliada/da extrema-esquerda”.

Depois continua, mas só concluir dedicado ao Rui, a conclusão final do poema é: "Quanto à maioria da esquerda/ficará - se ficar - para outro poema”.

 

[RISOS]


[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho
Grupos Amarelo e Cinzento. João Camarneiro e Ricardo Carlos
 
João Camarneiro
Um especial obrigado aos oradores e aos organizadores. Calha bem que o nosso orador tenha referido e falado no Estado Social porque nos vem mesmo a calhar. Por isso pergunto: com os falhanços de Sócrates, Hollande, a terceira via de Blair, com agenda própria da Direita e agora recentemente o decretar do fim do Estado Social na Holanda por parte de um governo da família europeia do PS, o que é que podemos concluir? Trata-se simplesmente do fim da Esquerda enquanto modelo governamental ou talvez o fim desta clivagem Esquerda/Direita em vez da busca de umarealpolitikadequada aos dias de hoje?
 
Ricardo Carlos
Boa tarde. Como todos sabemos, atualmente Portugal está numa situação delicada. A minha pergunta é a seguinte: existirão duas soluções para a recuperação económica e social do país, uma de Esquerda e uma de Direita, ou existe apenas uma única solução?
 
Miguel Poiares Maduro

Têm de existir alternativas, escolhas existem sempre, até porque elas não são fáceis e o que é importante é sermos transparentes quanto às escolhas que se oferecem às pessoas. No fundo a divergência que eu tenho aqui com o Rui é se essa escolha é mais utilmente apresentada às pessoas como uma alternativa entre Esquerda e Direita ou se é mais utilmente apresentada, oferece uma escolha mais séria, no sentido de corresponder mais às verdadeiras alternativas que as pessoas têm de fazer, se for apresentada em termos diferentes. Acho que esse é o primeiro ponto.

 

Mas gostaria de reforçar, até em relação à primeira pergunta que foi feita e ao que foi também mencionado antes, que nós não devemos achar que a circunstância da divisão Esquerda/Direita já não fazer em grande parte sentido significa que a política é reconduzida a uma espécie de escolha técnica, ou escolha mesmo entre personalidades. Não pode ser e seria muito perigoso se acontecesse. Aqui acho que estou de acordo com o Rui.

Como eu disse, há riscos muito grandes que nós temos: se a política desaparece e é apenas concebida como um processo técnico. A democracia exige alternativas e pluralismo político. Se é tudo uma questão de escolha objetiva por parte de uma análise técnica, essa dimensão da política desaparece.

 

Dei há pouco um exemplo: para mim a verdadeira escolha é quando falamos de flexibilização ou grau de flexibilização da legislação laboral. Porque, de novo, acho que ninguém defende que a legislação laboral deve ser completamente flexível nem ninguém defende que deve ser totalmente rígida. A verdadeira escolha é essa ponderação entre o valor da estabilidade que é importante na vida das pessoas e o valor de alargar o mercado de trabalho, o acesso de um maior número a postos de trabalho. Essa é a verdadeira escolha que nós temos aí.

Esse é um exemplo, mas outros dos riscos que nós temos é precisamente, como eu dizia, exatamente o oposto, que é: se tentamos eliminar a política da política, ou seja o pluralismo político, a existência de alternativas políticas, confronto entre diferentes ideias políticas da política, ao cairmos numa ideia de tecnocracia pura, ou cairmos no outro extremo - que também vemos aparecer - num discurso puramente voluntarista abstraído também da realidade. Que é esta ou aquela independentemente da realidade, que é gostaríamos de um mundo que hoje em dia tivesse uma regulação a nível global que garantisse isto, isto e isto, mas não é essa a realidade em que funcionamos.

 

Gostaríamos de uma Europa que se calhar fosse diferente do que é, mas não temos capacidade individual, enquanto país, nem estou a falar enquanto indivíduo, de determinar aquilo que é a Europa. Portanto, a questão é: de que forma é que podemos influenciar a Europa, como é que podemos exercer essa influência na Europa. As escolhas políticas têm de ser colocadas às pessoas no seu contexto.

 

Uma das críticas que eu faço ao principal partido da oposição da forma como fala da Europa é que a apresenta como uma alternativa a tudo o que nós temos de fazer. Como se a Europa poderia dispensar-nos de fazer qualquer sacrifício. Poder podia, podiam vir aqui e pagar-nos cheques permanentemente e fazerem tudo e mais alguma coisa, mas não é essa a real alternativa que temos. A real alternativa que nós temos é o que nós temos de fazer. Por um lado nós próprios atendendo àquilo que é a Europa hoje e por outro lado o que é que podemos ir fazendo na Europa para tentar ter uma Europa que também corresponda mais àquilo que nós gostaríamos que ela fosse.

Portanto, temos de reconstruir o debate político em termos de alternativas políticas, sem cair nestes dois extremos, que são duas formas de eliminar a política do próprio debate público e democrático.

 
Rui Tavares

OObamaCareé de Esquerda ou é de Direita? Nos Estados Unidos é de Esquerda porque a comparação com o que havia lá antes era nada, não havia nenhum sistema nacional de saúde. Os ricos pagavam, os pobres não pagavam e basicamente podiam ser arruinados por uma doença qualquer que tivessem. Durante muitos anos o sonho de ter um sistema nacional de saúde mobilizou a Esquerda dos Estados Unidos. E contrariando uma coisa que alguém disse há bocado, isso significa que transcendeu interesses pessoais ou sectoriais. Porque a coligação que conseguiu um sistema de saúde qualquer que não é tão bom quanto o europeu, que não era tão bom quanto eles queriam mas um qualquer que era melhor do que eles tinham, tinha desde ricos de Nova Iorque até pobres do Sul dos Estados Unidos, tinha cosmopolitas e rurais, tinha minorias raciais e universitários privilegiados.

 

No entanto, o que é que essas pessoas partilhavam? Não era a condição financeira, não era a condição social, partilhavam uma visão do mundo no qual a melhor maneira de resolver problemas graves de saúde numa determinada sociedade é através de instrumentos públicos. Os outros diziam "não, o mercado resolve isto, temos maravilhosos hospitais no Estados Unidos e chegam” e depois cada um que se desenrasque. Eram duas visões do mundo, praticamente incompatíveis e ainda são. Tanto que uma parte achava que era anticonstitucional fazer aquilo que os Estados Unidos fizeram.

Portanto, para nós oObamaCare- longe vá o agouro, porque eu não quero dar ideias a ninguém que aqui esteja -, se decidissem substituir o nosso Sistema Nacional de Saúde por umObamaCare, era claramente de Direita e eu opunha-me com todas as minhas forças. Porque, como foi dito no início, a relação entre a Esquerda e a Direita é dinâmica, é relacional, como o próprio nome indica, ela é mutável. É verdade que em determinados aspetos da nossa cultura, como por exemplo nos costumes, temos nos tornado mais liberais de um liberalismo que é de Esquerda, neste caso. Aceitava mais a igualdade no casamento, etc., e aí até há uma hegemonia social que é mais progressista.

 

No Brasil uma vez vi um anúncio de uma seguradora e ele dizia o seguinte: tinha um homem com uma barriga de grávida e dizia "você nunca vai ficar grávido” para que é que tem de pagar o seguro de saúde da mulher? O implícito disto é: "Não há sociedade, você está sozinho, é homem, não vai engravidar, porque é que há-de pagar um seguro de saúde mais caro?

Eu espero que em Portugal nunca ninguém ache que podemos privatizar até chegar a este nível. Portanto, isto estaria na Extrema-Direita do que acontece em Portugal, mas na verdade tem havido nos últimos anos um declive acentuado para este tipo de ideias de desregulamentação que opõem Esquerda e Direita e cujas consequências estão à vista se alguém decidir sair daqui e ir para países onde não há sistema nacional de saúde.

 

Portanto, quando o Miguel diz: "A oposição é entre os que defendem quem está no mercado de trabalho e quem defende um maior acesso ao mercado de trabalho”. Vamos lá a ver: isso não é uma oposição política nem pode ser considerado como tal, porque toda a gente defende um maior acesso ao trabalho. A discussão está em que a Esquerda acha que o que Direita propõe é um maior acesso ao mercado de trabalho muito pior e portanto, contrapõe com propostas para um maior acesso, ainda que tivesse de ser complementado com uma série de outras coisas. Ou seja, não só regulamentação laboral mas uma série de outras coisas como políticas de incentivo ao emprego, políticas diretas feitas pelo Estado, aquelas que a Direita acha que não devem ser feitas, para um maior acesso a um mercado de trabalho que continue apesar de tudo relativamente justo e não completamente desregulado.

 

Por isso, em relação à Europa é claro que há dois diagnósticos e soluções diferentes.
Derrapei aqui um bocadinho, depois tiro um minuto da próxima resposta.

Dois diagnósticos diferentes: a Direita foi dizendo que era um problema de crise da dívida soberana da Grécia, depois disse que era isso mais da Irlanda, depois desses dois mais Portugal, depois acrescentou a França e a Itália. A Esquerda europeia e até mundial, os americanos que olharam para o que se estava a passar, disseram que é um problema do Euro no seu conjunto. Daqui, destes dois diagnósticos diferentes, havia duas prescrições completamente diferentes, como se uns tivessem diagnosticado uma gripe e os outros uma epidemia de outra doença qualquer.

 

No caso da Esquerda, políticas de estabilizadores automáticos ao nível europeu: subsídios de desemprego europeus, salário mínimo europeu,eurobondse aí está uma diferença que também se aplica ao nível nacional, que é tentar ou não tentar. Este Governo não tentou. Vou-vos dar um exemplo. No Parlamento Europeu, a certa altura, fizemos uma plataforma de deputados dos países da crise e quisemos fazer um encontro entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros de Portugal, da Grécia e da Irlanda; na altura Paulo Portas; sabem qual foi a resposta da representação permanente de Portugal: "Nós não fazemos nada com a Grécia, nem uma apresentação no Parlamento Europeu”.

O que a Esquerda europeia sempre disse é que devia haver uma política europeia de alianças que partisse dos países da crise. É aí que têm um diagnóstico completamente diferente e uma solução completamente diferente, mesmo que essa solução não chegue no dia de amanhã. Começar a construir a aliança não quer dizer que vamos ter oseurobondsamanhã, mas quer dizer que ao menos estamos a construir a aliança para oseurobondse não simplesmente desligarmo-nos desse processo como fez o atual Governo.

 
Dep.Carlos Coelho

Muito bem, terminámos o ciclo de perguntas dos grupos, vamos entrar no sistema do "Catch the Eye”.

O Pedro Esteves vai tomar nota dos diferentes candidatos a falar nesta fase. Não temos muito tempo. Vou começar por dar a palavra ao Pedro Carvalho Esteves, seguido do António Coutinho.

 
Pedro Carvalho Esteves

Boa tarde. Muito obrigado aos conferencistas, pela conferência, pelo debate que hoje proporcionaram.

A distribuição de pensamento político à Esquerda e à Direita já não é atualmente útil, contudo continua a ser a matriz da distribuição do pensamento político. Como é possível modernizar a distribuição do pensamento político na dinâmica de hoje?

 
António Coutinho
Boa tarde. A minha pergunta é: de que forma é que os resultados das recentes eleições europeias, onde assistimos ao crescimento de partidos com posições extremadas e alguns casos à vitória como por exemplo o Syriza na Grécia e na França da Frente Nacional de Le Pen, afetarão a Europa nos próximos anos e o debate político no Parlamento Europeu?
 
Rui Tavares

Uma revista inglesa chamada Prospect fez um dia uma pergunta a 100 intelectuais: "O que é que pode substituir a Esquerda e a Direita?” Uns diziam Centralismo e Descentralismo, outros Sustentabilidade e Insustentabilidade, outros Autoritarismo e Liberdade, outros Tradição e Inovação, por aí adiante. Se vocês virem bem, qualquer uma destas divisões se resume a um aspeto tão parcelar da realidade política que não dão a riqueza de uma visão do mundo adaptável e moldável como estas que apesar de tudo têm sobrevivido a 225 anos e isso deve-nos querer dizer qualquer coisa. É porque elas vão agregando ideias de Inovação e Tradição, Centralismo e Descentralismo, que são diferentes. A maneira da Esquerda entender o Centralismo e o Descentralismo, ou a Inovação e a Tradição são marcadamente diferentes em relação às da Direita.

 

Portanto, a resposta a qual é que é a nova dinâmica, esta para já continua a ser a mais útil. Apetece dizer um bocadinho como Churchill: "A Democracia é o pior de todos os sistemas, à exceção de todos os outros”. Várias pessoas aqui disseram: "A divisão entre Esquerda e Direita já não é útil”, exceto que ainda é mais útil que todas as outras que a gente propõe para a substituir.

 

Em relação à segunda pergunta, não faria equivaler os extremos, o Syriza e a Frente Nacional têm posições que não são equivalentes, porque uma é universalista e a outra não é. A outra julga as pessoas pelo lugar de origem, pela cor da pele e pela sua religião. O Syriza tem até, em comparação com os partidos correspondentes em Portugal, tido posições muito mais avançadas em relação à União Europeia do que é habitual na Esquerda tradicional portuguesa naquela área política defendendo por exemplo aquilo que eu chamo de um projeto Ulisses para a Europa do Sul. Ou seja, um grande Plano Marshall para a Europa do Sul.

 

Ainda assim, creio que se calhar o crescimento dos extremos está associado a uma coisa de que aqui falámos que é a inextensão do Centro. Quando o Centro se torna num grande vazio político em que toda a gente, mais ou menos, defende a mesma coisa só que diz "eu vou fazer mais competente”, ou "votem em mim porque sou simplesmente melhor” sem explicar. Melhor, mas o que é que é melhor e pior? Qual é a tua visão do Mundo, do País, da Europa, do Futuro? Para onde é que caminhamos, ou não; não é uma questão de seres competente ou não.

Como nos últimos anos habituamo-nos a ver o Centro como uma coisa completamente indistinta, o que é que cresceu? Cresceu, evidentemente, quem do lado de fora vai estando cada vez mais zangado com esse Centro e diz simplesmente que não quer isso, que rejeita isto.

 

Isso é um efeito daquilo a que o Miguel se referia há bocado e que é verdade, que tem a ver com a colonização até da Esquerda pelo tal de Neoliberalismo. Eu defini-o quando falei nele: desregulação do mercado de trabalho, insistência no capital financeiro, achar que simplesmente esse capital financeiro vai produzir os excedentes financeiros para fazer crescer o resto da sociedade. Só que a Esquerda deveria ter continuado a opor a isto a sua visão de que numa sociedade desse género vai haver vencedores e perdedores e nós, como entidade política, temos de nos ocupar primeiro dos perdedores. Fazer crescer a sociedade de baixo para cima e não de cima para baixo.

 
Miguel Poiares Maduro

Vou começar por responder a alguns dos pontos que o Rui suscitou. Por exemplo a questão de que a visão predominante e a leitura feita da crise era uma leitura feita pela Direita europeia. Acho que o Dijsslbloem é do Partido Socialista holandês, é de Esquerda, foi presidente doeurogrupoe teve algumas posições que do ponto de vista daquilo que é a resposta europeia à crise estariam mais distantes do que o Rui pensava do que, por exemplo, Mario Monti que é alguém que tradicionalmente do Centro-Direita na Europa. Portanto, mais uma vez não encaixa totalmente nessa divisão.

 

Mas, em particular, gostaria de responder, já agora, à questão de "Portugal, o Governo, não tentou”. A questão é como é que se consegue ser influente a nível europeu - acho que este é que é o desacordo - e a nível internacional, mas neste caso em particular nos processos de decisão europeus, nomeadamente no contexto de um Estado que estava sob um programa de assistência, sob resgate financeiro, dependente do financiamento dos outros países europeus. O que diminuía, como é óbvio, a circunstância a que Portugal chegou, o nosso peso negocial na Europa e influenciava também a forma como devíamos exprimir as nossas posições na Europa. A circunstância de Portugal não pretender ter uma associação direta com a Grécia num determinado momento histórico era fundamental para recuperarmos a nossa credibilidade internacional. É isso que nos permite ter hoje taxas de juro muito mais baixas. Foi isso que nos permitiu também negociar a extensão das maturidades da dívida, conseguimos isso porque exercemos influência negocial num contexto de recuperação ao mesmo tempo da nossa credibilidade que exigia uma forma de exercício de influência e de poder na Europa que não passava por manifestações externas públicas de grande oposição à tomada de decisão.

 

Muitas vezes, na Europa, é-se mais influente debaixo do radar, se quiserem. Depende dos momentos e naquele momento, claramente, acho que Portugal conseguiu isso. É extremamente importante. Portugal tem vindo a assumir um discurso. Lembro-me que o discurso que o Primeiro-Ministro disse em Madrid dizia que Portugal defende a disciplina orçamental, mas acha que isso tem de ser complementado com um reforço da capacidade orçamental da União Europeia ao nível dos recursos próprios, por exemplo. Disse isso. Agora, o que é que nos dá legitimidade para vir agora defender que a União Europeia também tem de fazer mais ao nível da sua capacidade orçamental? É o facto de termos recuperado credibilidade desde logo ao nível da disciplina orçamental que exercemos nos últimos três anos.

 

Portugal foi um dos países mais influentes a conseguir a União Bancária, extremamente importante para nós, para as nossas empresas, para diminuir os custos de financiamento das nossas empresas. Devo dizer, aliás, que para demonstrar que isso não nos impediu de assumir posições e de ir assumindo cada vez mais uma posição mais assertiva na Europa, penso que o Primeiro-Ministro português foi talvez o primeiro a claramente afirmar que entendia que o Conselho tinha de nomear como Presidente da Comissão aquele que correspondia à maioria resultante das eleições para o Parlamento Europeu. O Primeiro-Ministro português foi o primeiro a fazê-lo com toda a clareza.

Portanto, Portugal tem tido uma posição. Agora, a forma como exercemos essa influência, como tentamos obter resultados ao nível da União Europeia, quer para o país diretamente, quer em termos daquilo que entendemos que a Europa deve ser para o bem da Europa e de Portugal, é que é diferente e pode ir variando.

 

Um último ponto em relação à questão dos partidos radicais na Europa: podemos ver o copo meio cheio ou meio vazio. Podemos dizer: só são 25% de partidos mais radicais num parlamento, com mais reservas em relação à União Europeia, nem todos. Como diz o Rui, eles também são muito diferenciados entre si e a minha preocupação fundamental é outra. O que eu temo é o facto de alguns argumentos desses partidos radicais começarem, por receio que estão a induzir nos partidos do sistema maismainstreamrelativamente ao seu crescimento, a contaminar o discurso político de partidos do sistema na Europa. Isso para mim é preocupante. Por exemplo ao nível da livre circulação de pessoas na Europa, isso é extremamente preocupante para mim, que partidos tradicionalmente europeístas do sistema da área moderada, daquilo que se definiria como de Centro, de Esquerda e de Direita, estejam a ser contaminados por esses partidos radicais. Para mim esta é a preocupação fundamental.

 

Porque o facto de a determinado momento conjuntural existir um crescimento desses partidos é um sintoma, temos de responder a isso, mas acontece periodicamente. Em períodos de crise económica tende a acontecer. É muito mais preocupante se isso acabar por dominar o discurso dos outros partidos políticos.

 
Dep.Carlos Coelho
Sara Garcez e António José Diogo.
 
Sara Garcez

Boa tarde. Obrigada pela oportunidade.

O que eu gostava de perguntar está relacionado com a Constituição da República Portuguesa, especialmente com uma parte do seu preâmbulo em que diz "abrir caminho a uma sociedade socialista”.

Será que Portugal tem seguido este caminho desde 1986, ou não?

Obrigada.

 
António José Diogo

Queria em primeiro lugar aproveitar esta minha primeira intervenção para saudar toda a organização desta universidade, na presença do senhor eurodeputado Carlos Coelho e saudar os oradores, Mestre Rui Tavares, senhor Ministro Miguel Poiares Maduro.

 

A minha pergunta vem na consequência do seguinte: atualmente o nosso país está em fase de contenção e mesmo assim, como já disse o senhor Ministro Miguel Poiares Maduro, o país está a ganhar credibilidade nos mercados, estamos a ter sinais de que estamos a voltar a recuperar a nossa economia e ela está lentamente a conseguir crescer e voltar a atingir a estabilidade. Mas a minha pergunta é a seguinte: a política de contração fiscal que vigora atualmente faz com que tenhamos um aumento das receitas mas de certa forma estagna o nosso crescimento económico, e com problemas cada vez mais graves no país como a projeção do colapso do nosso sistema de segurança social, o nosso ainda precoce aproveitamento dos recursos endógenos, a crescente contestação na estruturação do nosso sistema de saúde. Com tantos problemas como estes, cada vez mais a atingirem em termos sociais e económicos o nosso país, qual é exatamente a solução para que no futuro haja uma sustentabilidade garantida para a nossa geração?

 
Miguel Poiares Maduro

Quanto à questão do preâmbulo da Constituição, acho que mesmo se a Constituição fosse revista devíamos manter esse preâmbulo, faz parte da identidade histórica da Constituição. Agora, não podemos confundir aquilo que é uma identidade histórica da Constituição com aquilo que deve ser a interpretação da Constituição na sociedade que existe hoje.

 

Já dizia isto antes de ir para o Governo, enquanto constitucionalista, acho que em Portugal não existe um problema de texto da Constituição necessariamente, mas um problema de cultura constitucional na forma como se interpretam as normas da Constituição. Um dos pontos tem a ver precisamente com a interpretação da Constituição à luz ou não num processo de participação europeia. Nós não podemos continuar a interpretar a Constituição como se vivêssemos numa comunidade fechada. Ou não podemos continuar a interpretar a Constituição apenas para aqueles que já estão dentro do sistema, que já têm direitos. Lá está, de novo volto àquele que é talvez um dos eixos da alternativa política mais relevantes: entre aqueles que defendem sobretudo aqueles que já estão dentro do sistema e os outros que defendem os que estão fora do sistema.

 

Num mundo crescentemente interdependente como é o nosso, a nível europeu e a nível global, os direitos de um Estado têm de ser interpretados à luz daqueles que estão fora desse Estado, porque aquilo que um Estado faz tem consequências para aqueles que estão noutro Estado no seio da União Europeia. Mas o mesmo em relação à questão da sustentabilidade que estava a ser mencionada: nós interpretamos os direitos da Constituição à luz apenas daqueles que já estão no sistema, ou à luz da promessa que a Constituição também representa para aqueles que vão ser cidadãos também nessa comunidade política? Devemos interpretar uma Constituição para preservar apenas os direitos daqueles que já os têm, ou também o acesso a esses direitos de outros que vão fazer parte do sistema?

Essa é a divisão fundamental e é dessa forma que nós temos de responder a essa questão da sustentabilidade em vários aspetos, da sustentabilidade ambiental mas também financeira de um Estado.

 

A disciplina orçamental é uma forma de limitação da nossa liberdade de decisão num determinado momento. Se nos pudermos endividar infinitamente poderíamos decidir mais coisas, não é? Sobretudo se depois não fôssemos pagar. Ao delimitarmos com disciplina orçamental estamos portanto a limitar a nossa margem de escolha para preservar a escolha daqueles que vão fazer parte desta comunidade política no futuro, senão acontece-lhes a eles aquilo que nos está a acontecer neste momento, que é estarmos a pagar um preço muito alto porque outros tiveram uma margem de decisão muito elevada.

Já disse a alguns colegas meus do Governo, por vezes, que devia ser fantástico estar no Governo quando não havia a sensação de que se tinha de fazer escolhas mas limitadas, quando se podia escolher o que se quisesse. Não é essa a margem que nós temos agora. Este Governo e os seus membros têm de escolher - escolhas muito difíceis - dentro de uma margem muito apertada, que é aquela dentro da realidade em que vivemos.

Mas temos de ser ainda mais responsáveis e conscientes a fazer escolhas dentro dessa margem para garantir que aqueles no futuro não vão estar numa situação ainda pior.

 
Rui Tavares

Este preâmbulo da Constituição demonstra um ponto de que falámos que é a hegemonia da Direita no sistema político português. O CDS de Diogo Freitas Amaral votou contra a Constituição; a última vez que o vimos, Diogo Freitas Amaral foi Ministro de um Governo socialista, portanto isso significa que a política andou tanto para a Direita que algumas pessoas ficaram no Centro ou até na Esquerda no xadrez político de uma maneira que não estavam antes.

 

Em relação à pergunta sobre credibilidade e sustentabilidade, permite-me pegar numa coisa que o Miguel disse: "nós não fizemos coisas juntos porque estávamos em processo de conquista de credibilidade”.

Bem, eu acho - e não é de surpreender, pois a visão ideológica é diferente - que não estarmos solidários com aqueles que estão numa situação semelhante à nossa tira-nos credibilidade, não nos dá credibilidade. Ou seja, um país, um Governo, que não é capaz de dar a cara e estar solidário com aqueles que estão numa situação semelhante à nossa fica menos credível quando vai falar com os outros governos porque fica clara a sua posição de dependência e de dominação.

Mas além disso não funciona.

 

Vamos lá ver, fazer-vos algumas perguntas: o que é que acham que introduz segurança nos mercados e permite baixar os juros? É o Ministro Paulo Portas não ter ido ao Parlamento Europeu fazer uma conferência com o Ministro Lambrinidis dos Negócios Estrangeiros da Grécia, ou é mais ou menos na mesma altura o Diretor do Banco Central Europeu injetar um milhão de milhões de euros, não são mil milhões, é um bilião, apenas num dia, 500 mil milhões numa vez e 500 mil milhões noutra vez? Quer dizer, o que é que mexe com os mercados? É não ter havido a coragem de estar solidário com os gregos num determinado momento e mesmo dizer que a nossa situação não é exatamente igual mas estamos no mesmo buraco e a propósito, caros alemães, austríacos, holandeses, não pensem que esse buraco não é o vosso também porque é? Não ter tido a coragem política de fazer isso, que no meu ponto de vista só nos descredibilizou, ou o que é que baixou os juros?

 

Quer dizer, não foi não ter estado com os gregos numa sala no Parlamento Europeu, mas sim Mario Draghi ter metido um bilião de euros nos mercados. Vamos lá a ver, há aqui uma espécie de farsa. Os mercados ouvem quem emite moeda, é o Banco Central Europeu; quem determina taxas de juros, é o Banco Central Europeu, e quem injeta liquidez massiva nesses mesmos mercados; é isso que mexe com os mercados a nível global, não é o, localmente, nesta terra ou naquela, ir além da Troika. Porque aí, a propósito disso, não é verdade. Quer dizer, talvez agora o Governo ache que devia ser fantástico governar noutra situação, mas o Governo no início achou que devia ser fantástico governar com a Troika e ir além da Troika, portanto concordando basicamente com a visão do mundo que nos dizia que a credibilidade se conquistava cumprindo com as instruções que vinham de fora. Mas isso não nos tornou mais sustentáveis, tornou-nos mais insustentáveis e há exemplos do contrário.

 

Estive na Islândia e falei com o Ministro das Finanças da Islândia, que nem é do PS islandês mas do Bloco de Esquerda islandês. Não foram à visita da Troika, porque não era Troika, era FMI. O que ele me disse acerca de quando falou com o FMI foi que disseram ao FMI que eram uma sociedade social-democrata escandinava, era isso que a Islândia era. E que há cerca de 20 anos basicamente quiseram ser uma sociedade anglo-saxónica capitalista, meteram uma série de bancos na Islândia que se endividaram imenso, várias vezes o PIB da Islândia e basicamente perderam o caminho. E o que queriam, era voltar à tradição do Estado Social escandinavo e aquilo para que vos queremos aqui é para nos ajudar a fazer isso. Esse foi o cartão de visita que o Governo islandês apresentou ao FMI. Não foi o cartão de visita que o Governo português apresentou à Troika.

 

O Governo português disse à Troika que queria fazer o que eles diziam e ir mais longe. Quem é que está mais sustentável agora? Em que país é que até a Direita, porque a hegemonia na Islândia deslocou-se para a Esquerda e agora há um Governo de Direita e até este tem um plano para poder resolver uma parte das dívidas imobiliárias dos islandeses, que é o que os está a sufocar.

Havia outros caminhos de sustentabilidade e esses sim passavam por credibilidade, mas é uma visão muito diferente do que dá credibilidade a um país.

 
Dep.Carlos Coelho

Vamos para a última ronda de perguntas, estamos mesmo a chegar ao final do nosso tempo. Vou dar a palavra ao Filipe Moreira e ao Hugo Ferrinho Lopes.

 

 
Filipe Moreira

Boa tarde. A minha pergunta é mais direccionada para o Dr. Rui Tavares mas também gostaria de ouvir a opinião do Dr. Poiares Maduro.

 

Assumindo que faça sentido a existência de Esquerda e de Direita não serão estes termos motivo de um estigma associado às políticas que, como acabámos de ver com o Dr. Poiares Maduro, os partidos nem sempre seguem? Não criarão estes conceitos preconceitos nos jovens que começam a sentir o dever de participar ativamente na política, acabando por resumir a sua ideologia e o seu ideário político a conceitos tão reduzidos e voláteis quanto Esquerda e Direita?

 
Hugo Ferrinho Lopes

Antes de mais, boa tarde. Agradecer a presença dos oradores e os nossos parabéns, em nome do grupo, à organização. Devo dizer desde já que tenho uma opinião muito peculiar porque essa também é a minha área de estudo e posterior investigação.

 

Discordo e concordo com algumas coisas. Em primeiro lugar para o Mestre Rui Tavares, concordo que a partir do momento em que temos de fazer escolhas sobre uma determinada política pública, seja o legislador ou o executivo, temos de escolher a quem é que vai pertencer a propriedade dos meios de produção, se ao Estado ou se aos privados. Essa é uma escolha, desde logo, entre a Esquerda e a Direita, se devemos dar privilégio à igualdade ou à liberdade económica.

Discordo quando disse que isto começou a clivagem entre Esquerda e Direita porque ela já nos remete para 2400 anos A.C. desde a altura de Platão e Aristóteles quando Platão começa com o comunitarismo e Aristóteles com um muito pré liberalismo, mas não vamos entrar por aí.

 

Discordo, no entanto, do Mestre Rui Tavares no caso português. No Centro, entre o PS e o PSD não há grandes diferenças práticas. Embora eu defenda que a clivagem entre Esquerda e Direita ainda faça muito sentido sem dúvida alguma, no caso português se nos referirmos aos partidos do arco da governação não, não faz.

Para terminar, relativamente ao tema do pós 25 de Abril e da Constituição e aos nomes dos partidos, é verdade os partidos têm nomes de Esquerda. O nosso Partido Social Democrata, a Social-Democracia que é um sinónimo de socialismo democrático é uma ideologia de Centro-Esquerda. De facto, no pós 25 de Abril todos os partidos estavam até ao Centro, não nos esqueçamos depois da posterior evolução. O artigo 2, se não estou em erro, o Dr. Poiares Maduro poderá com certeza elucidar-nos, que dizia explicitamente que Portugal visa a construção de uma sociedade sem classes. Isso era claramente uma política e uma ideologia de Esquerda, que hoje em dia já foi revisto, não sei se estou em erro, mas em 1982.

Com isto termino.

 
Dep.Carlos Coelho
Rui Tavares para a última resposta.
 
Rui Tavares

Como esta é a última resposta quero aproveitar para dizer que gostei muito de estar aqui convosco e debater estas ideias convosco, que o debate de ideias quando é claro e assumido é sempre positivo. É muito melhor fazer um debate de ideias centrado em ideias do que fazer um debate de ideias centrado nos estigmas que eu acho que aparecem muito mais quando as pessoas pretendem só construir uma carreira política e não ter uma atividade cívica que se consolida neste debate de ideias.

 

Há aqui uma pergunta muito interessante que tem a ver com Portugal. De facto a diferença entre o Centro-Esquerda, o PS, e o Centro-Direita e a Direita em Portugal é uma diferença muito esbatida. É provavelmente a menor em toda a Europa Ocidental. Eu tenho uma hipótese de resposta porque é que isso acontece e como é que isso pode ser resolvido, porque nitidamente isso é um problema até para Portugal porque torna indistinguíveis os dois partidos de poder em algumas políticas. Tem a ver com outra coisa que também é especificamente portuguesa, que é o facto da Esquerda portuguesa estar completamente partida, quase como se estivesse a fazer a espargata.

No espaço vazio que existe entre PCP e Bloco de Esquerda de um lado e o PS do outro cabem todos os partidos da metade Esquerda alemã, Linke, os Verdes e os Sociais-Democratas. O PS está à direita destes, ou é mais centrista, e o Bloco de Esquerda e PCP mais no extremo do que estes partidos alemães. Acho que as duas coisas estão relacionadas.

 

Ou seja, o facto de não ter havido nunca um parceiro à Esquerda do PS que fosse uma Esquerda do Governo fez com que o PS estivesse na verdade sempre no Centro, quando estava no Governo e quando estava na oposição. Quando estava na oposição, porque sabia que se não tivesse uma maioria absoluta tinha de governar com quem? Com a Direita e portanto aproximava-se do Centro. Quando estava no Governo, porque tinha uma oposição de Direita no PSD e no CDS e uma oposição de Esquerda no PCP e no Bloco de Esquerda.

Portanto, isso é um dos grandes problemas da política portuguesa e um que eu gostaria que numa Universidade de Verão dos outros partidos de Esquerda que existem em Portugal fosse debatido e com pessoas de outros partidos, como vocês aqui fizeram e estando de parabéns pelo contraditório e pela diversidade.

 

O facto de a Esquerda portuguesa estar partida, haver um PS muito ao Centro e não haver à esquerda do PS uma Esquerda de Governo, fez com que a política em Portugal se tornasse muitas vezes, Governo após Governo, mais do mesmo. Isso em si é mau para a Democracia, porque esvazia o potencial de escolha no voto; as pessoas têm a sensação de que hoje vão votar e vai-lhes sair aquela política e amanhã vão votar e vai-lhes sair aquela política outra vez. Isto começa a ser um bocadinho como uma espécie dejackpotem que as pessoas põem moedas e sai sempre o mesmo resultado, um jogo propriamente viciado.

É importante para todos os portugueses, para toda a cidadania portuguesa, não só à Esquerda como à Direita, que as pessoas saibam que quando vão votar, escolhem um determinado conjunto de políticas que plausivelmente vão ser aplicadas e quando votam à Esquerda escolhem um conjunto de políticas e elas também têm diferenças em relação às que seriam aplicadas pelo outro Governo.

 

As ideias que várias vezes se repetiram na História, de esvaziar esta oposição e de querer governar "tudo pela pátria, nada contra a pátria; tudo pelo Estado, nada contra o Estado; tudo pela ditadura do proletariado, nada contra a ditadura do proletariado” correram mal. Correram mal e eram extremos, mas também corre mal quando se tenta superar as normais oposições e dinâmicas na sociedade por uma espécie de Centro indistinto onde o que está é apenas a carreira política, a clientela, a quem é que devemos favores. Isso, no fundo, acabaria por nos remeter para o tal passado de há mais de 225 anos em que a nossa trajetória cívica e política se definiria não pelas ideias que cada um tem e que vão naturalmente evoluir durante o tempo, mas muito mais a quem é que devemos favores, quem é nos meteu na política, quem é que manda ou não em nós, o Duque contra o Conde, o Rei contra o Papa.

Foi isso que superámos há 225 anos, numa história que teve muitas dificuldades e tragédias entretanto. Saibamos fazer os novos capítulos dessa história contando com as nossas diferenças de ideias e fazendo delas dinâmicas construtivas e não regressando a uma política vazia de ideias, que é o risco que está perante nós se nos desfizermos destes pontos cardeais da política que aqui temos estado a falar toda a tarde.

Muito obrigado.

 

[APLAUSOS]

 
Miguel Poiares Maduro

Dois pontos prévios só para responder relativamente a questões que o Rui suscitou. Obviamente que o BCE tem uma capacidade de influência sobre a forma como a crise evolui extremamente relevante. Agora, isso não invalida que nós assumamos uma posição que diz que a resolução dos problemas de Portugal passa só pelo que a Europa fizer. Passar aos portugueses a ideia que era dispensável os sacrifícios que tivemos de fazer e que sei que foram gravíssimos para muitos portugueses, que seria dispensável isso porque a Europa nos podia ter livrado desses sacrifícios, é uma alternativa falsa.

 

O que acho é que temos de reconhecer que em muitas circunstâncias a evolução que Portugal conseguiu não foi só uma evolução em virtude da política seguida pelo Banco Central Europeu, pelo Mario Draghi. Em boa parte tem resultado do sacrifício e do esforço feito pelos portugueses nos últimos três anos, que nós estamos hoje fora de programa de ajustamento com uma saída limpa, que aliás muitos diziam; a crescer pouco, é verdade, mas também depende da mudança do contexto europeu; e por exemplo a Grécia não está.

Não acho que possamos presumir que haveria alternativas fáceis. O Rui falou na Islândia e eu também já lá estive, aliás várias vezes. Fui consultor na Islândia no processo que esta teve contra o Reino Unido, a Holanda e a própria União Europeia. Eles tiveram uma queda do PIB muito superior à nossa. Claro que agora estão a crescer muito mais depressa, mas porquê? Porque atingiram o fundo muito mais rapidamente. Tiveram uma quebra do rendimento da população superior à nossa. Agora, tendo caído muito mais fundo muito mais rapidamente estão a recuperar também muito mais rapidamente. Mas em média ainda perderam mais do que perdemos em Portugal, quer ao nível do PIB, quer ao nível do rendimento.

 

Mas queria antes de concluir, responder à questão da forma de propriedade, porque é outro exemplo que me permite questionar esta ideia de Esquerda e de Direita e se é útil ainda. Uma outra alternativa seria dizer que a Esquerda prefere a forma de propriedade que é pública, a Direita prefere a privada e portanto a Esquerda prefere empresas públicas e a Direita empresas privadas.

Isto parte do pressuposto, do ponto de vista que a Esquerda tradicionalmente apresenta, que uma empresa pública mais facilmente assegura aquilo que é o interesse coletivo, definido pela sociedade como interesse coletivo público, enquanto as empresas privadas prosseguiriam os seus interesses particulares, os seus interesses privados. Sendo que a Direita nessa concepção defenderia que o bem geral deveria resultar do bem individual de cada um, que o mercado determinaria conforme essas formas de propriedade das empresas.

Ora, quando nós escolhemos uma empresa pública ou empresa privada não estamos a assegurar o interesse público mas sim uma forma de gestão. Uma forma de gestão em que os gestores são nomeados politicamente ou por concursos públicos que sejam definidos de uma certa forma ou de outra, em que os sindicatos têm um papel reforçado relativamente ao que têm nas empresas privadas porque mais facilmente se politiza o que se passa dentro de uma empresa pública do que numa empresa privada.

 

Portanto, o que estamos a definir ao escolhermos uma empresa pública, em primeiro lugar e sobretudo, não é garantir que vamos atingir um determinado resultado na forma como essa empresa vai agir, esperamos é que esse resultado advenha da forma de gestão. O que nós temos de ter consciência é que essa forma de gestão implica uma determinada escolha de administração, um determinado peso de sindicatos e certas formas de poder dentro das empresas. Escolhermos uma empresa privada para exercer uma determinada função é uma forma de gestão diferente, com formas de participação diferente, em que essa empresa vai responder sobretudo aos interesses dos acionistas e dos consumidores.

 

O que estou aqui a dizer, em primeiro lugar, é que esta é que é a escolha real que nós temos. Nós não podemos idealizar o funcionamento destas duas formas de gestão, uma que responde a determinado tipo de interesses prevalecentes e a outra a outro tipo de interesses, esperando que elas vão atingir os resultados idealizados que atribuímos.

Temos de ver é num contexto particular, por exemplo se há ou não concorrência naquele mercado, qual a forma de gestão que responde mais ou menos a diferentes conjuntos de interesses que pode ser mais eficaz na prossecução do interesse público. São essas que eu acho que crescentemente são as escolhas verdadeiras que temos de fazer.

 

Se injetamos uma escolha artificial, idealizada, como eu acho que em grande parte é aquilo que provoca uma escolha binária de Esquerda/Direita que já não tem correspondência com muitos aspetos com aquilo que é a realidade hoje em dia da sociedade e das alternativas políticas, então estamos a falsificar essa escolha. Já não a vamos fazer atendendo às reais alternativas, vamos fazê-la puramente com base numa retórica ou numa demagogia. É essa que eu acho que é a diferença entre a perspetiva que eu tenho e a do Rui relativamente à utilidade de manter ou não esta separação entre Esquerda e Direita como uma separação prevalente em matéria de alternativas políticas.

 

Dito isto, não quero deixar também de agradecer ao Rui a forma desde logo como o debate se processou mesmo tendo nós este desacordo.

Muito obrigado.

 

[APLAUSOS]

 
Dep.Carlos Coelho

Tenho muita pena em não ter tempo para poder dar a palavra a todos os que a pediram aqui e aos ex-alunos da Universidade de Verão que nos acompanham à distância e que formularam perguntas para Miguel Poiares Maduro e para Rui Tavares, mas não temos tempo para as colocar em cima da mesa.

 

Peço ao José Baptista para me acompanhar e acompanhar os nossos convidados à saída, e peço ao Paulo Pinheiro e ao Jorge Varela para virem aqui ajudar o Pedro Esteves a prosseguir os nossos trabalhos. E agradeço a Miguel Poiares Maduro e a Rui Tavares o excelente debate que nos proporcionaram.

 

[APLAUSOS]